Pedido lista seguidas declarações feitas pelo presidente da República contra o isolamento social, mesmo após o ajuizamento da ação. “Não há outras provas a produzir”, dizem procuradores
O Ministério Público Federal (MPF) enviou manifestação à Justiça Federal pedindo julgamento antecipado do processo contra o governo federal pelos discursos contraditórios emitidos por autoridades do Executivo, sobretudo o presidente da República, a respeito da pandemia da covid-19. A ação foi iniciada em Belém no início do mês de abril e, de lá para cá, os números de infectados e mortos não pararam de crescer, como também não pararam as falas de Jair Bolsonaro minimizando a letalidade do novo coronavírus e estimulando os brasileiros a desrespeitarem o isolamento social.
Para 12 procuradores da República que assinam a manifestação, já existem provas suficientes de que o comportamento das autoridades do governo federal em relação à pandemia contribuiu decisivamente para transformar o Brasil em epicentro mundial da doença, estimulando uma “multiplicação de medidas de relaxamento social, sem respaldo científico, em plena ascensão da curva de contágio da doença” e milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas, “um gravíssimo dano para as presentes e futuras gerações”. Para o MPF, uma decisão judicial obrigando o governo a adotar uma postura condizente com a gravidade do momento pode poupar ainda milhares de outras vidas.
Se a Justiça concordar com o julgamento antecipado do processo, pode declarar a responsabilidade civil da União pela omissão e pelas manifestações contraditórias e determinar, sob pena de multa diária de R$ 100 mil, que as autoridades públicas brasileiras ficam obrigadas a observar, em suas manifestações, as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e dos órgãos técnicos e científicos do Ministério da Saúde. A ação também pede que a população tenha garantido o direito de informação através da publicação de orientações e indicações sobre a necessidade imprescindível de isolamento social nos sites do Planalto, ministérios e canais oficiais nas redes sociais, aplicativos de mensagens e qualquer outro canal digital.
A publicação de orientações a favor do isolamento social também pode ser imposta ao perfil do presidente da República no twitter, por meio de uma sequência de tuítes que deverá ser mantida como tuíte fixado do perfil. Além disso, a Justiça pode condenar a União a ressarcir os danos morais coletivos e elaborar um plano de comunicação e utilização de contas em redes sociais que obedeça ao direito à informação e ao princípio da transparência da administração pública.
Asco e desdém
Para o MPF, o dano moral ao povo brasileiro está configurado pela ofensa aos valores da pessoa humana. A petição ressalta que a dor, sofrimento e padecimento estão “absolutamente presentes, diante da falta de empatia e das manifestações de asco e desdém do presidente da República em relação às mortes de brasileiros pelo novo coronavírus, além das muitas declarações que demonstram que desde o começo da pandemia ele minimizou ou subestimou o perigo que o vírus ainda representa para a população”. O MPF lembra que, até os dias atuais, após a saída de dois ministros da saúde, Henrique Mandetta e Nelson Teich – que não completou um mês no cargo – o Brasil não possui ministro efetivo. Permanece um ministro interino no exercício da pasta, em plena pandemia.
Após o ajuizamento da ação, em 4 de abril, o presidente da República reiterou em diversas ocasiões, por discursos e atitudes, o comportamento irresponsável em relação à pandemia e o desrespeito ao isolamento social. Na manifestação apresentada hoje à Justiça, o MPF enumera os passeios que Jair Bolsonaro fez pelas ruas de Brasília em vários momentos, sempre sem máscara e cumprimentando muitas pessoas de perto. Em vídeos, lives e postagens em série nas redes sociais, o presidente criticou constantemente o isolamento social e tentou convencer os brasileiros que o novo coronavírus não era grave, estava tendo o impacto exagerado ou que a pandemia já estava passando (disse isso no domingo de Páscoa, por exemplo)
“Parece que está começando a ir embora essa questão do vírus, mas está chegando e batendo forte a questão do desemprego”, disse, em live com religiosos. “Menos de uma semana depois (18/04), quando mais de 2,3 mil brasileiros tinham morrido, Bolsonaro disse que havia medo em exagero. ‘Temos um vírus que está aí. Infelizmente tem morrido gente. Tem, né? Ninguém falou que ia ser diferente. Mas o pavor foi demais’, enumera a ação do MPF, que prossegue. “No dia 20, as mortes no Brasil passavam de 2,5 mil. Os repórteres pediram um comentário do presidente da República sobre esse número. Bolsonaro reagiu assim: ‘Oh cara, quem fala, eu não sou coveiro, tá certo? Eu não sou coveiro.’”
“As falas do Presidente da República, autoridade máxima da nação, como agente público que tem a responsabilidade de realizar a política de combate à covid-19 devem ser coerentes com os fins perseguidos, em obediência à linha adotada e às recomendações da OMS. Não podem se mostrar incoerentes e implicar sinais contraditórios à população”, diz o MPF na manifestação.
“Há clara omissão da União em relação à obrigação de oferecer informações com transparência, em respeito às recomendações de saúde, técnicas e científicas. A Gestão “irresponsável” em relação à covid-19 representa, também, um risco regional e mesmo internacional, pois chegamos, no Brasil, no dia 29/06/2020, à assoladora marca de 58.385 mortos e 1.370.488 de casos confirmados do novo
coronavírus. O descontrole da pandemia no país pode ser creditado, em grande parte, à ausência de uma política pública federal séria de combate à covid-19 e às posturas contraditórias de seus agentes públicos, em especial, do seu representante maior, o presidente da República”, diz a petição.
Processo: nº 10108056620204013900
Íntegra da manifestação
Ministério Público Federal no Pará
Assessoria de Comunicação