Após três anos na justiça, a decisão garante, em definitivo, a retirada da cerca que limitava o acesso à área de várzea do quilombo
Em decisão do último dia 17 de novembro, a Vara Agrária de Santarém garantiu aos quilombolas da comunidade de Patos do Ituqui, em Santarém (PA), a retirada definitiva da cerca instalada por três fazendeiros em uma área de várzea dentro do território. A cerca impedia o livre acesso da comunidade ao rio onde desenvolvem as práticas das atividades econômicas e de subsistência.
O conflito com fazendeiros que arrendaram a terra para criação de gado bovinos e bubalinos dentro do território já se estendia há pelo menos três anos.
Em 2020, a Associação de Remanescente de Quilombola de Patos do Ituqui (ARCQUIPATOS), com assessoria jurídica da Terra de Direitos à Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), entrou com uma ação contra os três fazendeiros pedindo a retirada da cerca de madeira erguida pelos fazendeiros em parte do território quilombola onde iniciaram a criação de gado bovinos e bubalinos, obstruindo a passagem da comunidade ao Lago do Maicá e prejudicando as atividades de pesca, lazer e criação de animais.
Além disso, comunitários também relatam que a criação de búfalos nas áreas alagadas do território causa degradação ambiental e prejudica os modos de vida tradicionais dos quilombolas.
A recente sentença dada pelo juiz Manuel Carlos de Jesus garante de forma definitiva a reintegração de posse da área aos quilombolas de Patos do Ituqui, confirmando a liminar do ano passado na qual a justiça entendeu que a comunidade provou a posse da terra, assim como o uso comum do território em atividades de subsistência praticadas na área, antes da presença dos fazendeiros.
Para Eliane Oliveira, quilombola de Patos do Ituqui, a decisão remedia uma parte do conflito vivenciado há anos com fazendeiros. “A priori a questão da cerca causava um conflito com a comunidade porque impedia o trânsito entre a área de várzea e o rio. Da mesma forma quando estava cheio, a cerca causava acidentes com embarcações. Então com essa decisão, uma parte do conflito vai acabar e parar, e isso é positivo.
Ela conta que com a decisão liminar em 2022 os fazendeiros demoraram a retirar completamente a cerca e quando tiraram deixaram os restos de madeira no local. Uma preocupação constante era que a cerca voltasse a ser erguida caso a decisão fosse desfavorável aos quilombolas.
A comunidade Patos do Ituqui é uma das 13 comunidades quilombolas de Santarém e fica localizada no planalto santareno, tendo acesso tanto por terra firme quanto pelo Lago do Maicá – um braço do Rio Amazonas. Em períodos de verão, quando há a seca do Rio, as áreas de várzeas servem de pastagem para o manejo pecuário da comunidade, que vinha sendo limitado pelo cercamento feito pelos fazendeiros.
Com a recente sentença o juiz confirmou os argumentos apresentados pelos quilombolas de Patos do Ituqui quanto as práticas e modo de vida comunitários e tradicionais no território. “No que concerne à produtividade, a autora sustenta que no imóvel objeto da lide desenvolve a prática de atividades referentes a criação de gados, a pesca comunitária, caça de subsistência. Acerca da produtividade da área pela associação requerente o Laudo Pericial realizado confirmou tal assertiva”, pontua.
Da mesma forma o juiz Manuel Carlos ressalta a importância do laudo pericial realizado na área em 2021 para fundamentação da sentença em favor da Associação e dos quilombolas, confirmando a presença da comunidade e as práticas de subsistência tradicionais, anterior a chegada dos fazendeiros. “Há elementos documentais no processo, especialmente o Laudo Pericial elaborado pelo perito do juízo, que identificou que a associação requerente exerce na área em litígio a prática da pecuária, por meio de seus associados, anterior ao esbulho alegado”, relata.
Para Pedro Martins, assessor jurídico da Terra de Direitos que assessora a comunidade, “a sentença é paradigmática ao proteger a posse quilombola em território não titulado, isso porque a proteção da territorialidade independe do reconhecimento prévio ou autorização do Estado”, declara. E aponta também como a decisão pode repercurtir em outros casos de comunidades quilombolas.
“Esse caso auxilia também outras comunidades quilombolas pois é um precedente positivo diante de conflitos possessórios que são reflexo da estrutura fundiária baseada no desigual acesso à terra tendo como indicador a raça”, finaliza
A sentença estabelece ainda multa de R$ 10 mil por dia caso os três fazendeiros voltem a instalar qualquer tipo de cercamento na área que é utilizada de forma tradicional pelos quilombolas.
Titulação quilombola e conflitos fundiários
O quilombo de Patos do Ituqui foi certificado como remanescente de quilombo em 2013 pela Fundação Cultural Palmares e está na fase inicial do processo de titulação pelo Incra. Essa demora no andamento das titulações dos territórios quilombolas trazem diversos conflitos para as comunidades, que precisam lidar com a invasão das áreas por terceiros, como é o caso de Patos de Ituqui.
De acordo com levantamento feito pela Terra de Direitos, o Pará possui 67 processos de titulação abertos no Incra. O Levantando aponta ainda que caso o Estado brasileiro mantenha o atual ritmo de regularização fundiária dos territórios quilombolas serão necessários 2.188 anos para titular integralmente os 1.802 processos abertos no momento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Antes da judicialização em 2020, os quilombolas da Patos do Ituqui conviviam com o cerceamento e a violação do seu direito ao território provocado pelos fazendeiros. Somente com a recente sentença, três anos após a entrada na justiça, é que a comunidade vai conseguir ter o acesso livre em parte da área de conflito, retomando com a prática da criação de gado, pesca artesanal, extrativismo, lazer e outras atividades no lado.
E esse não é o único conflito no território. A mesma área que estava em juízo desde 2020 possui também uma outra cerca ainda presente, que causa as mesmas problemáticas e ainda não teve uma resolução. Além disso, em 2012, um fazendeiro que possui uma propriedade dentro do território entrou com uma ação judicial contra pessoas da comunidade que reivindicavam a retirada de uma cerca em outra área, que compreendia uma parte em várzea e uma em terra firme, usada para pastagem de animais. Na ocasião, a justiça sentenciou considerando que a área de terra firme era de posse do fazendeiro, determinando somente a retirada da cerca da área de várzea.
A demora no processo de titulação e a manutenção de propriedades privadas no território quilombola, coloca a comunidade de Patos do Ituqui recorrentemente em situações de conflitos e limitações de suas atividades de subsistência.
Fonte: Terra de Direitos