Em jogo, uma área riquíssima em minérios e biodiversidade; A disputa no STF se arrastava havia 16 anos.
Por: Carlos Mendes
O estado do Pará acaba de obter uma vitória retumbante, por unanimidade, no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF). Estava em jogo uma área de 2,4 milhões de hectares – maior do que o estado de Sergipe – riquíssima em minérios e biodiversidade, que sempre foi paraense, mas que o estado de Mato Grosso dizia ser dele. A disputa no STF se arrastava havia 16 anos.
Nos votos a favor do Pará dos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello (relator do caso), Luiz Fux, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes – convalescendo de cirurgia, o ministro Dias Tóffoli não participou da votação, enquanto Carmem Lúcia absteve-se de votar – foi decidida ontem, de uma vez por todas, a histórica controvérsia sobre a quem pertence as terras.
O que o STF na verdade julgou, dando razão ao Pará, foi a controvérsia relativa ao marco geográfico conhecido como Salto das Sete Quedas, o qual teria sido eleito pelos estados de Mato Grosso e Pará, mediante convênio firmado em 1900 – portanto, há 120 anos, vejam só -, como divisa geográfica a oeste da linha divisória.
A conclusão do julgamento ocorre após o ajuizamento da ação, em 2004, por Mato Grosso, que pretendia ver reconhecida, como parte do território daquele estado, extensão de terra que teria sido “indevidamente incorporada ao Pará em 1922”.
Segundo consta na inicial, em 1900 Mato Grosso e Pará celebraram convênio denominado “Convenção de Limites Estabelecidos entre os Estados de Mato Grosso e Pará”, sob a chancela do governo Federal. O resultado foi o estabelecimento dos limites territoriais entre os dois Estados, sendo que o Salto das Sete Quedas, localizado à margem do Rio Araguaia, foi definido como o marco geográfico limítrofe no extremo Oeste entre Mato Grosso e Pará.
Em 1922, alega Mato Grosso na ação impetrada contra o Pará no STF, uma equipe do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, hoje conhecido como IBGE, teria errado na demarcação da fronteira ao elaborar a “Primeira Coleção de Cartas Internacionais do Mundo”. Sustenta que a linha divisória foi traçada de forma equivocada e totalmente contrária à Convenção de 1900. No caso, o IBGE teria considerado como ponto inicial do extremo Oeste a Cachoeira das Sete Quedas e não o Salto das Sete Quedas.
Dessa forma, o cerne da controvérsia no Supremo era analisar se o tal marco geográfico diverso do estipulado pela Convenção de 1900 foi adotado a partir de 1922 ou se, conforme sustenta o Estado do Pará, ocorreu, tão somente, mudança de nomenclatura do mesmo acidente. Quer dizer, essa briga toda não era por pontos geográficos diferentes, na fronteira entre os dois estados, como sustentava Mato Grosso.
Mudou só a nomenclatura
Segundo o entendimento dos ministros que acompanharam o voto do relator, Marco Aurélio, a prova pericial coligida no processo atesta que teria ocorrido apenas a alteração de nomenclatura do marco geográfico utilizado como referência para a definição dos limites entre os Estados.
“O acidente geográfico acordado como ponto de divisa oeste entre os Estados do Pará e do Mato Grosso, na Convenção de limites de 7 de novembro de 1900, aprovada pelo Decreto nº 3.679/1919, é o situado mais ao sul, de coordenadas médias 9º 22’S e 56º 40’W Gr, denominado, até 1952, “Salto das Sete Quedas” e, a partir desse ano, como “Cachoeira das Sete Quedas” nos mapas e cartas modernos”, resumiu Marco Aurélio, julgando improcedente a ação de Mato Grosso.
Com essa decisão unânime do STF, foi revogada a liminar de 2004, que suspendia a regularização de terras situadas na faixa territorial ainda não demarcada entre os Estados. Além da decisão, Mato Grosso foi condenado a pagar os honorários advocatícios, no valor de R$ 100 mil.
Em conversa com o Ver-o-Fato, o agrimensor Paraguaçu Elleres, que conhece o processo como poucos, comemorou a decisão: ” o Pará está de parabéns. Há quatro meses encaminhei o histórico desta matéria para cada um dos ministros do STF. Em 1996 sobrevoei num helicóptero da Base do Cachimbo, junto com o governador Almir Gabriel e o coronel Gilmar Nunes, comandante da Base. Em 1996 e 1998, como Diretor Técnico do lterpa, estive em Cuiabá para tratar da demarcação do limite, e em 2001, a pedido do governador Almir, elaborei laudo com 45 documentos, a maioria de meu arquivo, sobre os aspectos geográficos e históricos da matéria”.
Geógrafo previu vitória
Em maio de 2010, escrevi matéria – bem antes, em 2004, quando ainda trabalhava no jornal O Liberal, também fiz ampla reportagem, quando Mato Grosso decidiu processar o Pará no STF, alegando que as terras eram dele – sobre a perícia que seria feita pelo Serviço Geográfico do Exército. ” Do ponto de vista técnico, não há como o Pará perder para Mato Grosso essas terras”, afirmou na ocasião o geógrafo Vicente de Paula Souza, designado pela procuradoria-geral do Estado do Pará para atuar como assistente da perícia no trabalho do Serviço Geográfico do Exército que iria definir, por intermédio de perícia topográfica, a exata localização do ponto identificado na Convenção de Limites de 1900, que estabeleceu a fronteira entre os dois estados.
A perícia do Exército durou quase 6 meses. “Eles (Mato Grosso) apresentaram um único argumento cartográfico de 1952, que segundo nossa vasta pesquisa traz representação equivocada do limite, enquanto nós apresentamos vários produtos anteriores, em especial, aquele que representa o limite na data da Convenção, além de documentos e relatos de expedições “in loco” que confirmam o limite que temos hoje”, argumentou Vicente Souza.
Um trunfo a favor do Pará, na avaliação do geógrafo, foi o despacho do Ministério Público Federal (MPF), detalhando no item 31 a seguinte observação: “é bem verdade que os documentos colacionados, dentre eles mapas representativos da Convenção e estudos realizados à época de sua realização, apontam para a situação descrita pelo Estado do Pará, ou seja, no sentido de que efetivamente o que houve foi simples alteração do nome do acidente definido na Convenção”.
Para os procuradores de Mato Grosso, a confusão de limites foi criada pelo IBGE ao misturar o acidente geográfico Salto de Sete Quedas com a Cachoeira de Sete Quedas. Ao determinar a perícia nas terras, o ministro Marco Aurélio Mello acolheu pedido nesse sentido formulado pela Procuradoria de Mato Grosso. Apesar do que diz o MPF, o otimismo do procurador-geral daquele estado, Dorgival Veras de Carvalho, era alimentado pela certeza de que uma “perícia independente” faria aumentar as chances de vitória de Mato Grosso. O raciocínio dele era simples: “se Mato Grosso sofreu prejuízos, ele tem que reaver aquilo que é seu”.
Coudreau e Rondon
De maneira contrária pensava o então procurador-geral do Estado paraense, Ibrahim Rocha. Ele entendoa que a avaliação de Mato Grosso era equivocada, porque estaria baseada em uma “história da carochinha por eles inventada”. O alegado erro nas cartas geográficas que favoreceu o Pará, dizia Rocha, nunca existiu. O que houve foi apenas uma troca de nomes do mesmo acidente geográfico, a Cachoeira de Sete Quedas.
O IBGE definiu os limites entre os dois estados baseado em traçado feito no final do século 19 pelo explorador francês Henri Coudreau (1859-1899). Mato Grosso soube disso em 2003, ao ouvir a informação do então chefe do Departamento de Estruturas Territoriais (Depet) do próprio IBGE, Paulo César Martins, na sede do órgão no Rio de Janeiro. A região do litígio, no extremo oeste do Mato Grosso, parte do ponto mais ao norte da Ilha do Bananal, no rio Araguaia, e avança em linha reta até o Salto das Sete Quedas, no rio Teles Pires.
Em 1952, o marechal Cândido Rondon discordou do mapa original, levantando a polêmica ao declarar que o limite de Mato Grosso com o Pará não é aquele que está delimitado no mapa do IBGE. Esse limite estaria um pouco mais acima. A troca do Salto de Sete Quedas pela Cachoeira das Sete Quedas encorajou Mato Grosso a bater nas portas do STF, querendo as terras hoje em poder do Pará.
O livro de Henri Coudreau “Viagens ao Tapajós”, escrito há mais de cem anos, foi um dos escudos da defesa paraense no STF. Coudreau, de acordo a apresentação do livro, foi um daqueles intrépidos viajantes do século 19 que nos fascinam pelas descrições pormenorizadas de um mundo que se encontrava ainda em um estágio de colonização bastante incipiente.
Os motivos de sua viagem prendem-se a uma disputa acerca das divisas interestaduais entre o Pará e o Mato Grosso. Coube a Coudreau estabelecer o ponto daquele importante rio mais adequado para se estabelecer limite natural entre os dois estados. A narrativa dele não se limita à mera descrição das condições de navegabilidade do rio.
O autor analisa a topografia, a vegetação, as rochas; prevê as possibilidades de ocupação e exploração das terras ribeirinhas; descreve pormenorizadamente as populações com as quais manteve contato, especialmente as tribos selvagens; compara entre si os dialetos indígenas, seus modos de vida, seu folclore, seus rituais.
Há no livro, inclusive, uma descrição da maneira pela qual os munducurus “encolhiam” as cabeças de seus inimigos, revelando um “segredo” que muitos consideraram perdido.
Enfim, o Pará venceu a batalha. E ficou com o que sempre foi dele.
Fonte: VER-O-FATO
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*Carlos Mendes – É jornalista e editor do site Ver-o-Fato