Seminário do MPF e Fundo Dema conclui apoio à iniciativas em reparação a danos do naufrágio do Haidar, no Pará

Evento abordou a justiça socioambiental na Amazônia
Foto: Élida Galvão/Fundo Dema

O Ministério Público Federal (MPF) e o Fundo Dema, fundo de justiça socioambiental e climática que apoia projetos coletivos e comunitários na Amazônia, realizaram, em 27 e 28 de março, em Belém (PA), o seminário “Justiça Socioambiental na Amazônia: a experiência de projetos comunitários do Edital Territórios Livre de Mineração em Barcarena e Abaetetuba”. Durante dois dias, os participantes puderam dialogar sobre crimes ambientais, processos de reparação e os desafios do sistema de justiça.

A atividade, que reuniu cerca de cem pessoas no auditório do MPF na capital paraense, marcou a execução do Fundo Socioambiental Barcarena e Abaetetuba e a finalização do Edital Territórios Livre de Mineração (TLM), que apoiou 42 iniciativas comunitárias nos territórios de Barcarena e Abaetetuba em reparação aos danos coletivos ocorridos com o naufrágio do navio Haidar, em 2015.

Abrindo a programação, o procurador da República Igor Lima Goettenauer de Oliveira, a presidenta do Comitê Gestor do Fundo Dema, Graça Costa, e o pesquisador Marcel Hazeu, líder do grupo de pesquisa Sociedade, Território e Resistências na Amazônia (Gesterra), da Universidade Federal do Pará (UFPA) compuseram a mesa “Desafios Enfrentados para a Reparação Socioambiental na Amazônia”, ocorrida na manhã do primeiro dia.

O representante do MPF destacou a atuação das organizações sociais como elemento fundamental para o sucesso do acordo relativo aos impactos do naufrágio do navio Haidar. “Tradicionalmente, o sistema de justiça está mais bem preparado para lidar com direitos individuais, e não com a complexidade das demandas de violações a direitos difusos e coletivos, em especial quando se trata de reparações ambientais, tendo em vista que os danos não respeitam limites geográficos. Tratar desses temas só é possível com o apoio da sociedade civil. Sem isso, o sistema de justiça dificilmente conseguirá entregar bons resultados”, frisou.

(Foto: Heverton Almeida / Divulgação)

Resgate histórico – A presidenta do Comitê Gestor do Fundo Dema, Graça Costa, resgatou a trajetória da parceria do Fundo com o MPF, construída a partir do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do caso Haidar. De acordo com a representante do Fundo, essa experiência trouxe elementos importantes de coletividade, mesmo diante das dificuldades.

“Com o TAC, foi aberto um edital que apoiou 42 projetos nos territórios e, nessa trajetória, foi muito importante e fundamental a presença do MPF. A complexidade é grande, mas também queremos celebrar a conclusão de experiências coletivizadas, que não ficaram apenas nos resultados dos projetos, mas que alcançaram outros patamares da frente de lutas com intercâmbios de conhecimentos entre as iniciativas apoiadas”, destacou Graça.

Envolvimento comunitário – O pesquisador Marcel Hazeu esteve à frente do diagnóstico que apontou os impactos, levantando as necessidades das comunidades de Abaetetuba e Barcarena, e que deu subsídios ao lançamento do Edital TLM. Para ele, o TAC do navio Haidar foi diferente porque envolveu as comunidades desde o início de sua elaboração. “Muitas vezes o TAC se torna um acordo para [as empresas] continuarem poluindo. As empresas vêm atuando e provocando danos aos territórios sem licença ambiental. As comunidades nunca são consultadas e o direito à consulta prévia, livre e informada é violado”, criticou.

Reparação ambiental – A segunda mesa do seminário, intitulada “Crimes Ambientais e os Projetos Comunitários como Medida de Reparação Socioambiental”, contou com a participação do procurador da República Bruno Araújo Soares Valente, da educadora do Fundo Dema Beatriz Luz, da moradora da comunidade quilombola Bom Remédio, em Abaetetuba, Rosicleia Ferreira e do morador do Território do Tauá, em Barcarena, Carlos Espíndola.

Tendo acompanhado desde o início o processo que levou à criação do Fundo Socioambiental Barcarena e Abaetetuba, o procurador da República Bruno Araújo Soares Valente falou sobre a experiência em lidar com o processo de danos coletivos. “Quando se trata de crimes ambientais é sinal de que outras instâncias falharam. Barcarena é um grande laboratório disso. As comunidades não sentiam que eram beneficiadas com as medidas mitigadoras. O TAC do navio Haidar possibilitou que o recurso da reparação chegasse diretamente às famílias afetadas, porque geralmente o valor dos danos coletivos é aplicado em um fundo federal e não fica vinculado ao local das populações prejudicadas”.

Traçando uma linha do tempo da trajetória de criação do Fundo Barcarena e Abaetetuba, Beatriz Luz relembrou as dificuldades, desafios e os resultados do edital, que, entre seus marcos, foi atravessado por um período pandêmico. “Nosso primeiro passo se deu a partir da realização de oficinas para escutar as necessidades das populações locais; depois, em parceria com o Gesterra, foi feito um diagnóstico para entender o rumo do edital e suas linhas de apoio. Aprovamos cinco projetos de constituição de organizações, dez na categoria regularização e 42 projetos de implementação. Cerca de 80% das associações que acessaram o edital gestaram um projeto pela primeira vez. Elas se fortaleceram em um processo de resistência e depois acessaram outros fundos”.

Representante da Associação dos Agricultores das Famílias Tradicionais da Amazônia do Rio Tauá (Asafatra), apoiada por meio do Edital TLM, Carlos Espíndola relatou a importância da iniciativa coletiva para a comunidade. “A Fase [organização Solidariedade e Educação] e o Fundo Dema abriram portas para a gente. Construímos uma Casa de Cultura, no nosso território, onde há 210 famílias. O mutirão não foi só para construir, mas ele deu um sentido à coletividade, trouxe convivência, troca de experiências, partilha de alimentos, assim como aprendemos com nossos antepassados. Nosso dever não é acertar e conversar nada com as empresas. Se a gente tem um protocolo de consulta, ele precisa ser respeitado”.

Água vale mais do que minério – A terceira mesa, intitulada “Barcarena e os seus Rios-Povos em Ameaça e Resistência ao Saque e à Contaminação das Águas”, contou com a participação da integrante do Núcleo de Políticas Alternativas da Fase, Maiana Teixeira, e do integrante da Associação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Santo Antônio II, localizada na Ilha do Capim, em Abaetetuba, Hueliton Azevedo.

Maiana Teixeira apresentou dados de pesquisas que apontam os efeitos danosos da atividade minerária nos territórios de Barcarena e Abaetetuba. De acordo com a pesquisadora, desde a chegada das indústrias nesses territórios, somam-se 45 anos de desapropriações e deslocamentos forçados. “A Hydro/Alunorte iniciou a sua operação em 1995, produzindo 1,1 milhão de toneladas ao ano de alumina e, atualmente, esta produção está em 6,4 milhões de toneladas. Já são 30 ‘desastres’ ocorridos entre os anos de 2000 e 2021. Ao invés de ser o território das águas, está sendo um polo industrial”, disse.

A pesquisadora alertou, ainda, sobre a gravidade da situação da saúde pública. Análises feitas no sangue de moradores de comunidades que tangenciam o polo industrial apontam altos níveis de chumbo no organismo das pessoas, que causam diversos danos ao cérebro e à saúde. Segundo a integrante da Fase, oficialmente todo o licenciamento se dá em uma lógica defasada. “Para as empresas serem licenciadas, vão chovendo concessões. As indústrias de Barcarena consomem 93 vezes mais água do que a população da cidade. Criticamos o sistema de outorga porque quem diz o quanto vai usar de água é a própria empresa”, ressaltou.

Fazendo uma análise dos territórios de Barcarena e Abaetetuba, Hueliton Azevedo diz considerar que há três grandes movimentos: movimento de mercantilização da natureza, com cercamento das ilhas; movimento de autoproteção da sociedade, com a defesa do direito da terra e território a partir de TAC e processos de reparações; e movimento emancipatório, com o avanço dos Protocolos de Consulta. “Esses instrumentos têm que passar por melhorias qualitativas, porque o Estado não legitima o poder de veto dos Protocolos. O movimento emancipatório precisa fortalecer essa legitimidade e garantir o poder de veto”.

Cúpula rumo à COP 30 – Finalizando a programação, a quarta mesa do Seminário tratou da articulação dos movimentos sociais frente às injustiças socioambientais. Intitulada “A Cúpula dos Povos rumo à COP 30 e os Desafios do Sistema de Justiça Diante da Crise Ambiental”, a mesa de diálogo contou com a participação da coordenadora da Fase – Programa Amazônia e integrante da Cúpula dos Povos, Sara Pereira, do promotor de Justiça Márcio Silva Maués de Faria e do representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Francisco Kelvin.

“Barcarena e Abaetetuba é um microcosmo [onde se aglutinam muitos problemas]. Essa região deveria receber assistência do Estado, de forma prioritária, mas é esquecida. Todos precisamos estar alinhados no que nos interessa, reforçar o que nos torna comuns. A sociedade precisa estar mais organizada para defender os territórios e as populações que ali estão”, considerou o membro do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA).

O representante do MAB apontou a complexidade latente entre a necessidade criada pelo capital e a exploração dos bens comuns. Para ele, a Conferência das Partes (COP) tem sido bastante ineficaz e é necessário que os movimentos sociais qualifiquem a luta em defesa da Amazônia. “Barcarena é a maior mina de bauxita, com R$ 100 bilhões anuais de lucro. Há uma demanda muito crescente com o aumento da produção de carros elétricos, onde a principal matéria-prima é o alumínio. A gente tem um modelo de sociedade que boa parte das coisas necessitam de petróleo. O impacto da exploração traz o agravamento de doenças, alta nos preços dos alimentos, entre uma série de problemas”, destacou.

Sara Pereira afirmou a importância da Cúpula dos Povos em convocar a sociedade civil a lutar por uma sociedade justa e democrática. “É impossível falar em justiça climática sem falar em democracia. A Cúpula dos Povos é uma construção coletiva, um espaço diverso, plural e de convergência, para potencializar as vozes dos territórios, garantindo nas negociações as demandas dos povos e territórios”.

Entre muitos depoimentos expostos durante o debate, Marcos Cardoso, da comunidade de Caripetuba, em Abaetetuba, falou sobre a importância da articulação comunitária. “O Edital TLM respeitou a ancestralidade, os povos, porque escutou o que as comunidades queriam. Estamos firmes na luta para defender o nosso e os territórios vizinhos. O mercado cria a crise e nós sofremos as consequências. Precisamos fortalecer a luta e estar integrados aos debates da Cúpula dos Povos”, concluiu.

Texto: Fundo Dema, com adaptações

Ministério Público Federal no ParáAssessoria de Comunicação

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