Medida foi tomada após ‘Estadão’ revelar que parlamentares transformaram divulgação de atividade legislativa em negócio lucrativo.
A Câmara proibiu deputados de usarem o dinheiro da cota parlamentar para contratar serviços que gerem lucro na internet. A medida foi tomada após o Estadão revelar que parlamentares estavam transformando a divulgação de atividades no Congresso num negócio privado ao monetizar seus canais no YouTube, com vídeos que arrecadam recursos de acordo com o número de visualizações. A prática vinha sendo chamada de “toma lá, dá cá” nos corredores do Congresso.
“Era importante resolver esta polêmica”, afirmou ao Estadão o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Ele assina o ato da Mesa Diretora publicado nesta terça-feira, 28, com a nova regra. A decisão, no entanto, foi tomada em reunião no dia 22 de julho, dez dias após a reportagem do jornal mostrar que ao menos sete deputados estavam ganhando dinheiro dessa forma.
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Na lista estão Carla Zambelli (PSL-SP), Joice Hasselmann (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF), Otoni de Paula (PSC-RJ), Paulo Pimenta (PT-RS) e Flordelis (PSD-RJ), que contrataram empresas com dinheiro da cota parlamentar para fazer edição e montagem dos vídeos apresentados em seus canais no YouTube. Destes, apenas Pimenta e Otoni de Paula disseram à reportagem ter desistido da monetização.
“Não será objeto de reembolso despesa com a aquisição ou a contratação de serviços utilizados em benefício de contas em sites, redes sociais ou plataformas digitais que resultem em monetização, lucro, rendimento, patrocínio ou receita de qualquer espécie em favor do respectivo parlamentar ou de terceiros”, determina o ato da Câmara.
Na justificativa, o presidente da Casa diz ainda que o objetivo da nova regra é vedar reembolsos de despesas com serviços que resultem em vantagens financeiras ao parlamentar ou a terceiros.
Com base na reportagem do Estadão, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União pediu a abertura de uma investigação sobre o uso da cota parlamentar para gerir canais monetizados no YouTube. “Além de ser dinheiro público, se ficar comprovado o uso ilegal do poder da informática, a democracia brasileira acaba”, disse à época o subprocurador-geral do MP-TCU, Lucas Rocha Furtado. Especialistas dizem que a prática fere princípios da administração pública.
A nova regra da Câmara, no entanto, não abrange casos em que o parlamentar utiliza seus próprios assessores para alimentar os canais na internet e lucra com as visualizações. É o caso da deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR), presidente da legenda, que informou já ter lucrado R$ 32,3 mil. Além dela, apenas Zambelli (R$ 15,1 mil) e Otoni (R$ 2 mil) disseram quanto receberam da plataforma de vídeos.
Otoni disse que não operava a conta e que desativou a monetização do seu canal logo após ter sido procurado pela reportagem do Estadão. “Acho corretíssima a decisão da Câmara de regulamentar essa questão”, afirmou Otoni.
Canal administrado com dinheiro público tem até assinatura
O canal mais talhado para o negócio do YouTube é o Joice Hasselmann TV. Com 937 mil inscritos e uma soma de 200 milhões visualizações de vídeos, o canal oferece até assinatura, ao preço de R$ 7,99 mensais. Quem assina se torna membro do canal e tem direito a “selos de fidelidade ao lado do seu nome em comentários e no chat ao vivo” e a “um bate-papo semanal exclusivo, olho no olho” com a parlamentar. Joice pagou R$ 27,5 mil à Agência EG, entre agosto de 2019 e maio de 2020, para serviços que incluem o YouTube, segundo as notas fiscais reembolsadas pela Câmara.
A deputada se recusou a falar sobre o assunto e a revelar quanto ganhou com a monetização. “Todos os gastos realizados pela deputada Joice Hasselmann em seu gabinete são diretamente relacionados com sua atividade parlamentar, inexistindo qualquer desvio de finalidade nos gastos realizados”, afirmou sua assessoria.
A prática também ocorre no Senado, que não tomou nenhuma medida para restringi-la. O estreante Jorge Kajuru (Cidadania-GO) admite usar assessores pagos pela Casa para gerir um canal no YouTube que devolve lucros para o parlamentar. Os vídeos na plataforma arrecadaram um total de R$ 48.339,72 desde que Kajuru assumiu o mandato em 2019, conforme ele mesmo informou.
“Para mim, desde que eu nunca use um centavo da cota parlamentar, não vejo nada de imoral na manutenção da parceria que tenho há mais de 10 anos com o YouTube, a plataforma que me remunera de acordo com a visualizações dos meus vídeos. Fiz antes de ser eleito senador e seguirei fazendo assim que encerrar meu mandato, em 2026, pois não continuarei na política, mas continuarei ativo nas redes sociais”, escreveu o senador, no última dia 15, em resposta aos questionamentos da reportagem.
Pelo menos outros cinco senadores, incluindo Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, também ganham dinheiro com publicidade em seus canais no YouTube. Nenhum deles, contudo, usou recursos da cota parlamentar – paga pelo Senado para despesas do gabinete – na gestão dos canais. Também negam usar assessores para produzir os vídeos.
Procurado para comentar a decisão da Câmara, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), não se manifestou.
Prática pode caracterizar conflito de interesses
Especialistas dizem que a prática da “monetização” fere princípios da administração pública. “Em tese, você tem um conflito de interesse muito grande. Se ficar caracterizado que há uma remuneração pessoal do parlamentar por conta de um serviço que foi contratado utilizando dinheiro público, há um desvio de finalidade”, afirmou o advogado Valdir Simão.
Ex-ministro do Planejamento e da Controladoria-Geral da União (CGU), ele disse que nenhuma dúvida pode pairar sobre a utilização de recursos públicos. “Se, de fato, os serviços pagos com verba indenizatória renderam aos deputados vantagens pessoais, é uma violação clara aos princípios da moralidade e da impessoalidade na administração pública.”
Para o ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCE-DF), o advogado Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, a verba parlamentar tem por finalidade a promoção do trabalho de parlamentares. Ele ressaltou, no entanto, que, havendo retorno financeiro, isso não poderia levar à apropriação de recursos pelos próprios parlamentares. “Poderia surgir alguma questão de improbidade aí.”
Marina Atoji, gerente de Projetos da ONG Transparência Brasil, ressaltou que o Código de Ética e Decoro da Casa pode ter sido ferido. “No mínimo, a prática da monetização atenta contra o decoro parlamentar e, no limite, é improbidade administrativa”, disse.
Fonte: Estadão
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