Juiz alegou em sentença que a comunidade não comprovou a permanência na terra
As onze famílias que moram no local chamado de Sítio Bacabal, as margens da Avenida Fernando Guilhon, em Santarém, vivem mais um capítulo da difícil luta para conseguir sossego em suas moradias. Após decisão judicial em dezembro negando a posse da terra, as famílias assessoradas pela Terra de Direitos, em parceria com o Sindicato de Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR), recorreram na justiça para garantir a permanência no local onde vivem há 37 anos.
Na sentença dada pelo juiz da 2ª Vara Cível e Empresarial de Santarém, a comunidade não teria apresentado fatos que comprovassem a permanência na terra e ainda alegou que as famílias buscam o direito por conta da valorização imobiliária do local. “Situação como a vivenciada nos autos são extremamente corriqueiras neste município. Pessoas que são meros detentores na posse se arvoram em buscar, sem razão, a propriedade do bem”, aponta o juiz na sentença. No entanto, os fatos da realidade – e que compõem as provas anexadas no processo em favor das famílias – mostram o contrário.
O suposto dono da área, um empresário do setor imobiliário da região, tem ameaçado e criminalizado as famílias, chegando a promover a destruição arbitrária e irregular de cinco casas no local. De acordo com as famílias e conhecidos residentes nas áreas próximas, quem estaria com interesses econômicos visando a venda da terra e especulação imobiliária, na verdade, seria o empresário, nunca tendo exercido a posse e deixando o local inutilizado por muitos anos.
Para a assessoria jurídica da Terra de Direitos, que acompanha o caso, na sentença o juiz não observou todos os fatos necessários em favor nas famílias de Sítio Bacabal.
“Esse processo de usucapião, além dos outros que seguem tramitando junto com este nesta Vara em Santarém, tem produzidas várias provas de que a comunidade habita neste local há décadas, e que sequer foram mencionadas pelo juízo na necessária fundamentação da sentença. Também não se viu a manifestação da Defensoria e do Ministério Público no processo, obrigatórias em casos de conflitos coletivos complexos como esse caso, contribuindo para uma decisão que não contempla a realidade dos fatos e a necessária justiça social para esses cidadãos santarenos que hoje se veem de todo desamparados pelo Estado”, ressalta.
Posse da terra pela comunidade
A comunidade de Sítio Bacabal atualmente formada por 37 pessoas, sendo 18 adultos e 19 crianças, contestou na justiça essa decisão. As famílias não apenas vivem como também sobrevivem dos recursos naturais daquele território que vai da pesca ao extrativismo. São essas famílias as responsáveis pela preservação ambiental do local ameaçado pela especulação imobiliária que têm avançado sob os territórios da região.
“É necessário que seja considerado nesse processo a realidade social da cidade de Santarém, sendo que essas famílias nasceram e cresceram no local em harmonia com a natureza, fazendo bom uso da terra como prevê a Constituição Federal. Não se pode aceitar que não seja enfrentando na sentença todos os argumentos levantados e as provas juntadas durante essa luta judicial que já dura mais de 10 anos.”, aponta a assessoria jurídica de Terra de Direitos.
Ainda que, inicialmente, as ameaças, conflitos e a judicialização do caso, tenham recaído sobre o Valdecir, patriarca das famílias que ser formaram no Sítio Bacabal, o impacto de intimidações e da violência que cerca o lugar recai sobre toda a comunidade, sem distinção de homens, mulheres ou ainda as crianças. No dia 18 de junho de 2021 – em período de pandemia da Covid 19 – casas foram demolidas a mando, segundo Valdeci, da pessoa que reclama ser dono da área. Em uma das casas dormiam duas crianças que foram arrastradas para fora enquanto o trator fazia a demolição.
Todo esse contexto foi apresentado para contestação da decisão, uma vez que as famílias se encontram cada vez mais em situação de vulnerabilidade social e econômica. “A remoção forçada da área ocupada afronta a dignidade da pessoa humana e ignora o dever do estado em proteger o mínimo existencial, consoante a própria missão constitucional”, apresenta o documento peticionado em favor da comunidade.
Claudiolane Ferreira é a mãe das duas crianças que dormiam dentro de uma das casas que foi demolida. Ela relata que, quando o trator avançava para cima de sua casa, temeu pela vida dos filhos. “Quando vemos, ele derrubou a casa do meu cunhado e foi em direção à minha que estava com meus dois filhos dormindo. Foi quando eu pedi pra eles pararem, os capangas que estavam armados, disseram que não poderiam fazer nada. Eu estava grávida e não sabia o que fazer, só chorava e gritava, pois meus dois filhos estavam lá”, relata.
Em decorrência do momento tenso e desesperador, a mãe, que estava grávida na época, chegou a passar mal. Conta que o trauma pelo ocorrido afetou todos os moradores do Sítio Bacabal. “[…] os meus filhos que só viviam com medo e não podiam ver um carro que eles pensavam que era o trator, pois daí em diante nunca tivemos sossego. E assim vivemos com medo, insegurança, porque antes deles aparecerem, se dizendo dono da terra, éramos felizes e vivíamos em paz” desabafou a mãe.
Ameaça de despejo
No ano passado, uma decisão de reintegração de posse colocou as famílias novamente diante da possibilidade de despejo de Sítio Bacabal, mas a decisão foi revertida após apelação judicialimpetrada pela assessoria jurídica da Terra de Direitos.
Com vários processos em andamento há mais de 10 anos, a comunidade precisa estar sempre alerta e combativa. E nesse processo de resistência também tem contado com entidades e movimentos sociais de defesa dos povos de Santarém/Tapajós como Conselho Pastoral de Pescadores, Movimento Tapajós Vivo, Cáritas Santarém, Colônia de Pescadores Z-20, Associação de Moradores de Santa Maria, Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Santarém, Conselho Nacional das Populações Extrativistas, Federação das Associações de Moradores, Comunidades e Entidades do Assentamento Agroextrativista Eixo Forte, Projeto Saúde e Alegria, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI), Grupo de Defesa da Amazônia, Rede de Notícias da Amazônia, Sociedade para Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente, Tapajós de Fato e os já mencionados Sindicato de Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR) e Terra de Direitos.
A luta da comunidade de Sítio Bacabal, para garantir a permanência na terra, o direito à posse mansa e pacífica e a paz para continuar criando seus filhos e tirando seu sustendo do local como há décadas vem fazendo, continua.
Fonte: Terra de Direitos