‘Yandé, o Sairé’: Boto Tucuxi exalta união do povo Borari com grandes alegorias, gingado e sedução

A ‘galera linda’, como é denominada a torcida do boto cinza foi um dos destaques da apresentação com alegria contagiante na noite de sexta, 15
Foto: Silvia Vieira/g1

Como o tema escolhido propõe “Yandé, o Sairé”, que na língua nativa dos Borari significa “Nós”, a união do povo que mantém viva a verdadeira essência do Sairé, se fez presente no Lago dos Botos na apresentação do Boto Tucuxi. Para contar o seu enredo, o Tucuxi usou 12 alegorias [algumas gigantescas] ao longo da apresentação vibrante, marcada pelo passos ritmados do carimbó, pela cênica de cada um dos seus componentes e, principalmente, pela alegria contagiante.

Apresentação de Boto Tucuxi

Sob o comando e olhares atentos da Comissão de Artes composta por Allan Hills, Elivelton Corrêa, João Pedro Dias e Ludnéa Lobato, os 500 brincantes entregaram um belíssimo espetáculo ao público que lotou o Lago dos Botos na noite desta sexta-feira (15). O Boto Tucuxi abriu o Festival dos Botos 2023, que encerra na noite deste sábado (16), com a apresentação do Boto Cor de Rosa.

O espetáculo foi embalado pelo Regional Tucuxi (Yandé, a folia do Sairé!). A banda Regional Tucuxi representa os foliões do Sairé, em que a oralidade dos antepassados e o repasse de geração para geração foram e são essenciais para a manutenção da tradição dos foliões do Sairé que tocam o reco-reco, xeque xeque, caixas e tambores.

Retomada do Sairé

Com 11 títulos do Festival e em busca do bicampeonato, o Tucuxi lembrou a liderança de dona Terezinha Lobato e outras importantes mulheres aguerridas, que possibilitaram que no ano de 1973, acontecesse o resgate do Sairé, uma tradição mesclada com ritos indígenas e religiosos. A retomada da festa está completando 50 anos.

Espetáculo do Tucuxi homenageou os 50 anos de retomada do Sairé — Foto: Sílvia Vieira / g1
Espetáculo do Tucuxi homenageou os 50 anos de retomada do Sairé — Foto: Sílvia Vieira / g1

Em um cenário de tradições e costumes, onde tudo se faz vida por meio do trabalho coletivo, o Boto Tucuxi mostrou que o Sairé sempre foi e sempre será feito pela coletividade – “nós”-, que são os indígenas borari, os ancestrais, a aldeia, a vida, a tradição, o povo, os caciques, os encantados, os artesãos, os catraieiros, os rezadores, os barraqueiros, as doceiras e muitos outros.

“O Tucuxi veio destacar as mãos da coletividade, que juntas nos mostram que sempre será Yandé, o Sairé! Nós, o Sairé! O espetáculo Yandé, o Sairé”, disse o presidente do Boto Tucuxi, Toninho Araújo, no início da apresentação.

Itens

Os itens do boto, 16 no total, são avaliados por jurados. No espetáculo do Tucuxi, eles foram responsáveis por mostrar por meio da sua dança e cênica, a diversidade cultural, valorizando sempre a coletividade.

“Yandé, para os sábios ancestrais, significa o viver no solo sagrado de forma que tudo deve sempre ser feito por nós e para nós. Enquanto o Sairé, que é a celebração da fartura na aldeia dos borari, também é o espaço das diversas manifestações culturais dos povos que chegaram neste solo sagrado”, explicou Elivelton Corrêa, da Comissão de Artes.

Ao locutor Daniel Costa, 21 anos, foi confiada a missão de apresentar o Boto Tucuxi. Ele concorre como Apresentador – Item 01, como Yandé, o kurasi, que representa a luz da resistência, o sol para o povo borari. É o guardião da luz e fundamental para o início de um novo dia. É nessa luz, que começa a alvorada do Sairé. O apresentador é o fio condutor do espetáculo, representa a voz da resistência do Sairé, que há mais de 350 anos celebra a tradição e os costumes do povo. Daniel subiu ao palco do Tucuxi fazendo uma saudação em Nheengatu.

Daniel Costa, o apresentador do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira / g1
Daniel Costa, o apresentador do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira / g1

Concorrendo ao item 02 – Cantador, o diretor audiovisual, cantor e compositor MBlack Marialva, 43 anos, chegou em uma alegoria de violino, cantando a ladainha do rio do Sairé. “Yandé, o Espanta Cão”, representa o grupo de pau e corda Espanta Cão, que se mantém resistente na festa do Sairé, e recebeu este nome por causa da movimentação feita ao tocar o violino, que remete ao sinal da cruz, onde acredita-se que este gesto espanta o cão (demônios).

Na indumentária do cantador, destaque para as estrelas que representam os membros do grupo Espanta Cão que já se foram, e a estrela maior representa seu Canuto, homenageado do Tucuxi, que foi o último da geração de 1973 que fazia parte do grupo.

MBlack Marialva, o cantador do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira /g1
MBlack Marialva, o cantador do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira /g1

Um dos pontos altos da apresentação foi o “Ritual”, que concorre no item 14. “Yandé, o Ritual do Tarubá”, celebra a fartura da aldeia. É um ritual que perdura por vários dias, onde os indígenas agradecem e ofertam alimentos a Tupã. Toda a celebração é feita com cantos e danças, onde o povo bebe o tarubá, uma bebida sagrada. É sabido na aldeia, que a bebida de Tupã, quando ingerida pode trazer o castigo, capaz de deixar todos em delírio. As crianças da aldeia não podem participar da celebração, pois o tarubá causa efeitos de embriaguez, e por isso são colocadas em um local reservado.

A bebida do Tarubá é um elo do humano com os seres das encantarias, e serve para provar a resistência dos nativos contra as maldades com a grande floresta.

O ritual contou com a alegoria Oca Kuxima – grande oca antiga do povo Borari, e teve participação cênica de indígenas borari e do Grupo Festa de Carimbó.

Fabiano Alencar deu vida ao curandeiro do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira / g1
Fabiano Alencar deu vida ao curandeiro do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira / g1

Mas ritual tem que ter curandeiro. E concorrendo ao Item 05, o professor de dança Fabiano Alencar, 45 anos, deu vida ao Curandeiro do Boto Tucuxi.

“Yandé, o Curandeiro” surgiu na alegoria na Floresta Nató – a grande jaguatirica que conduz os seres encantados durante a noite, que traz toda a ancestralidade e o saber da floresta e tira o povo borari do transe e faz com que eles voltem ao normal, e assim seguem a vida em harmonia com as encantarias. O Curandeiro veio transfigurado na rasga mortalha.

Todo o espetáculo é embalado por músicas que ajudam a contar o enredo. No item 13 – Letra e Música, a música “Sairé pra dançar”, composição: Luíz Alberto Chuíca e Edilberto Ferreira, levantou o público presente no Lago dos Botos.

No trecho: “Capitão saúda a nossa rainha, sapiência que me alucina, enfeitado de sorriso e fita, envolvente ao meu Sairé”, uma menção à Rainha do Sairé, que concorre no item 03.

“Yandé, a Revelação do Sairé”, traz na sua representatividade a missão de Nossa Senhora da Purificação e o contato do colonizador com os indígenas, e como catolicismo é incluído nos ritos do Sairé.

A alegria de Valentina Coimbra, a Rainha do Sairé do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira / g1
A alegria de Valentina Coimbra, a Rainha do Sairé do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira / g1

A estudante universitária Viviane Valentina Lima Coimbra, 21 anos, a Rainha do Sairé do Tucuxi, chegou ao lago na alegoria Oca Kuxima – a Oca antiga do povo borari, que se transformou na Revelação do Sairé. Já a indumentária da rainha representa a praça do Sairé, onde acontecem os ritos da tradição borari.

A evolução da rainha fez alusão e homenagem a dona Terezinha Lobato que foi juíza do Sairé e a todas as mulheres que contribuíram no resgate da grande festa.

“Aqui está toda a nossa cultura, o profano o religioso, as cores, o barracão, que eu trouxe na minha saia e que têm uma grande importância na nossa religião e eu sou muito grata por estar hoje aqui”, disse Valentina Coimbra ao fim de sua apresentação.

No gingado do carimbó

A torcida do Tucuxi foi um show à parte. “Yandé, a nossa Galera”, a torcida apaixonada do Boto Tucuxi é carinhosamente conhecida como Galera Linda. A torcida cantou, evoluiu com adereços e vibrou durante toda a apresentação, concorrendo ao item 16 – Galera.

Galera linda do Tucuxi deu um show de evolução e animação — Foto: Gleilson Nascimento / g1
Galera linda do Tucuxi deu um show de evolução e animação — Foto: Gleilson Nascimento / g1

E não faltou gingado, passos firmes e devidamente coreografados. Concorrendo ao item10 – Carimbó, “Yandé, a resistência da cultura: miscigenação”, os grupos: Carimbó do Pará, Encanto do Tapajós, Mistura de Carimbó e MOJOB, fizeram bonito no Lago dos Botos. Até quem não é da região se arriscou nos passinhos e no ritmo contagiante do carimbó.

O carimbó representa o encontro de diversos povos, que originou a miscigenação cultural e formou o contexto de sociedade de Alter do Chão.

Carimbó contagiou público presente no Lago dos Botos — Foto: Sílvia Vieira / g1
Carimbó contagiou público presente no Lago dos Botos — Foto: Sílvia Vieira / g1

Reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil desde 2014, o carimbó está inscrito no Livro de Registro das Formas de Expressão. Há mais de dois séculos, o carimbó mantém sua tradição em quase todas as regiões do Pará, e tem se reinventado constantemente, não sendo diferente aqui na aldeia Alter do Chão.

Balanceia minha rainha

Do alto, sobre a alegoria Yurupari, a curupira protetora da fauna e flora amazônica, surgiu a Rainha do Artesanato – Item 06. A rainha foi representada pela estudante universitária Isadora Maria Matos dos Reis, 25 anos.

Rainha do Artesanato do Boto Tucuxi, Isadora Matos — Foto: Sílvia Vieira / g1
Rainha do Artesanato do Boto Tucuxi, Isadora Matos — Foto: Sílvia Vieira / g1

“Yandé, a mãe da mata”, clama pela preservação e proteção das nossas florestas. É das matas que o povo tira o seu sustento, trabalha com toda a biodiversidade, e assim produz sua arte.

“Eu tenho a grande responsabilidade e honra de representar todos os artesãos de Alter do Chão. A gente sabe que tudo que a gente usa aqui a gente tira da natureza”, disse Isadora Matos.

A estudante de educação física Dani Tapajós, 25 anos, concorreu ao item 04 – Cabocla Borari, representando “Yandé, as Mulheres Borari”. A força e a resistência da mulher Borari destaca-se na figura da cabocla borari, que traz no seu sangue toda a ancestralidade do seio matriarcal. Ela chegou conduzida pela alegoria Uirá Piranga – Arara Azul, que na sabedoria dos Borari, é um pássaro que só tem um amor na vida. E assim, é a Cabocla Borari, e seu único amor é o boto Tucuxi.

Dani Tapajós, a Cabocla Borari do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira / g1
Dani Tapajós, a Cabocla Borari do Boto Tucuxi — Foto: Sílvia Vieira / g1

Em seguida surge a realeza das águas de Alter do Chão, conduzida pela árvore Zineira, que tem dentro de si a flor de aguapé, e é o presente de Tupã ao povo Borari. É Rainha do Lago Verde – Item 09.

“Yandé, a mãe das encantarias do Lago Verde”, representa a mãe das encantarias, e é guardiã do boto Tucuxi. A Rainha do Lago Verde foi representada por Lara Taís Borari, 24 anos, professora de educação infantil.

Lara Taís fez sua estreia como Rainha do Lago Verde — Foto: Sílvia Vieira / g1
Lara Taís fez sua estreia como Rainha do Lago Verde — Foto: Sílvia Vieira / g1

A apresentação da Rainha do Lago Verde teve participação especial de Ana Dias, primeira intérprete da música zineira, que era cantada na apresentação da dança nas festas do Sairé.

Botos

E no festival do Sairé não pode faltar o personagem principal. Concorrendo no item 08 – o Boto Animal Evolução surgiu conduzido pela buyawasú, a cobra que habita o lago e ajuda na proteção dos seres das encantarias.

Douglas Vinhote, o boto animal do Tucuxi com a menina do boto, Carla Naamã — Foto: Sílvia Vieira, g1
Douglas Vinhote, o boto animal do Tucuxi com a menina do boto, Carla Naamã — Foto: Sílvia Vieira, g1

O estudante de engenharia civil Douglas Vinhote, 28 anos, deu vida ao boto da preservação. “Yandé, o boto da preservação” chegou acompanhado da sua menina (Carla Naamã), que traz toda a inocência das cunhantãs Borari. Ela alimenta o boto com os peixes que ela pesca nas águas do Rio Tapajós.

E não podia faltar o Boto Homem Encantador – Item 07. A responsabilidade de dar vida a “Yandé, a transmutação do Boto”, coube ao tecnólogo em redes de computadores Breno Tavares, 30 anos.

Breno Tavares na interpretação do boto encantador — Foto: Sílvia Vieira / g1
Breno Tavares na interpretação do boto encantador — Foto: Sílvia Vieira / g1

A história conta que nas noites de festa do Sairé, a lua cheia surgia no céu para iluminar toda a festança. A beleza da luz se espalha pela aldeia, e chega até o lago verde, e isso desperta o boto tucuxi, que se transforma em um lindo homem todo vestido de branco, usando um chapéu branco feito de arraia, e traz no peito um muiraquitã, amuleto sagrado do povo borari.

Ao sair das águas e caminhar pela praia de Alter do Chão, segue até a festa do Sairé, atraído pelo cheiro das ervas nativas, que é exalado pela Cabocla Borari. O Tucuxi, todo galante e encantador, dança e bebe a noite toda nos dias de festa do Sairé. Ele chegou ao lago na alegoria Mimbira Paranã – é o filho do Rio Tapajós

Sedução

O ponto alto da apresentação dos botos é a Sedução. “Yandé, o Encanto do Boto”, o Boto Homem Encantador, com toda a encantaria das águas é atraído pelo cheiro da cabocla, e consegue conquistá-la com seu encanto e magia. A luz da lua cheia ilumina a aldeia em festa. Após horas e horas de dança, chega a madrugada e o boto homem consegue conquistar a linda Cabocla Borari e a leva para a ilha do amor, que fica em frente ao Lago Verde. É o momento ideal, para o grande ato de sedução.

Breno Tavares e Dani Tapajós encenando a sedução — Foto: Sílvia Vieira / g1
Breno Tavares e Dani Tapajós encenando a sedução — Foto: Sílvia Vieira / g1

O espetáculo Yandé, o Sairé trouxe a história real do auto do Boto Tucuxi, que segundo os antigos, apareceu e encantou a mais linda cabocla da aldeia e lançou sobre ela o encanto do boto.

Cura e apoteose

A apresentação do Boto Tucuxi encerrou com o ritual “Yandé, a Cura”, onde a encantaria presente no corpo da cabocla é retirada para que o equilíbrio ecológico da Amazônia seja mantido. Somente o curandeiro, com a sabedoria das florestas, enviado por Tupã pode salvar a bela moça. E assim, é feito o rito de cura, utilizando as ervas nativas da floresta.

Ritual de cura liberta a cabocla borari — Foto: Sílvia Vieira / g1
Ritual de cura liberta a cabocla borari — Foto: Sílvia Vieira / g1

Após o rito de cura, a festa continua na aldeia com muita dança e animação. Com o barracão preparado e adornado para o rito religioso do Sairé, concorre no item 11 – Organização do Conjunto Folclórico, com celebração em cecuiara na varrição da festa. Muitos cantos e danças, na diversidade cultural do povo borari.

E como em apoteose, o Tucuxi finaliza com o resgate da tradicional Dança do Sairé, que é a essência dos borari. Todos dançam o macucauá, quebra macaxeira. É hora de lembrar que para fazer a grande festa, precisa-se do povo (Yandé – Nós).

https://10174a340c4b1f2df7f459d93fe6b003.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-40/html/container.html

A apresentação encerrou sob os gritos: gritos de “Yandé, o Sairé!!”, mostrando que o Sairé é feito por muitas mãos, a essência da ancestralidade de um povo, que celebra a fartura na aldeia, e é o espaço para diversas manifestações culturais que se conectam com o saber dos originários.

“O Tucuxi veio com essa proposta de fazer um espetáculo e foi cumprido. Tucuxi é Yandé, Tucuxi somos nós, todo mundo, todos os artistas, todos os brincantes, toda a diretoria, todo o povo de Alter Chão, a imprensa que tanto no ajuda na divulgação. Todos nós somos Sairé. Nós fazemos o espetáculo. Todos têm uma participação no espetáculo. E o Tucuxi é isso, a galera não para, a música parou, mas essa galera linda fica desse jeito cantando. Por tudo isso nós acreditamos no bicampeonato”, declarou Toninho Araújo.

A história do Festival dos Botos

O Festival dos Botos faz parte da programação do Sairé desde 1997. Foi uma forma de representar e homenagear uma das lendas que fazem parte da cultura da região: a lenda do Boto.

Encenações, danças e alegorias fazem parte do Festival dos Botos que tem de um lado o Tucuxi e do outro o Cor de Rosa. Nos anos de 1997 e 1998 os botos se apresentavam juntos e posteriormente, em 1999, surgiu a primeira disputa entre os dois.

Por Sílvia Vieira, Gleilson Nascimento

Fonte: g1 Santarém