Após liberar assentamento no PA para garimpo, Incra terá participação no lucro com extração de ouro

Contrato fechado com a mineradora Belo Sun diz que a empresa terá de “pagar participação nos resultados ou rendas provenientes da atividade do empreendimento ao Incra na forma determinada em lei”
Assentamento na região da Volta Grande do Xingu, no Pará; documentos mostram que mineradora comprou lotes em transações irregulares. Foto: Andrew Christian Johnson

Incra decidiu não apenas reduzir a área de um assentamento agrário na região da Volta Grande do Xingu, no Pará, como vai ter participação direta nos lucros com a exploração de ouroque a empresa canadense Belo Sun quer fazer na região.

Estadão teve acesso à versão final do contrato que foi fechado entre a Belo Sun e o Incra. No documento, consta a cláusula que diz que a empresa terá de “pagar participação nos resultados ou rendas provenientes da atividade do empreendimento ao Incra na forma determinada em lei”.

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O contrato não diz a qual lei se refere e não detalha qual será o porcentual de participação. Procurados pela reportagem, o Incra e a Belo Sun ainda não se manifestaram sobre esse item do acordo. 

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Com a regra, o Incra, que é um órgão federal ligado ao Ministério da Agricultura e que tem como missão básica dar andamento à reforma agrária do País, passa a ter participação direta nos resultados de um garimpo industrial, que pretende ser o maior projeto de mineração de ouro do País, conforme repete há anos a Belo Sun.

Conforme revelou reportagem do Estadão na terça-feira, 7, o Incra firmou o contrato com a Belo Sun para reduzir a área de um assentamento criado há 22 anos. O empreendimento seria instalado a poucos quilômetros abaixo da barragem da hidrelétrica de Belo Monte.

No acordo, o Incra concordou em reduzir uma área de 2.428 hectares da região, cortando o território do assentamento Ressaca e da gleba Ituna, onde vivem cerca de 600 famílias. Em troca, o Incra vai receber uma fazenda localizada a mais de 1.500 quilômetros de distância dali, no município de Luciara, em Mato Grosso, nas margens do Rio Araguaia.  

O contrato estipula ainda que a empresa deve recolher o valor de R$ 1,340 milhão ao Incra, cifra apurada pela Diretoria de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assentamentos, “em contraprestação pelo uso da área do imóvel pertencente ao Incra”. O contrato não detalha o critério usado para estipular esse valor. 

Pelo acordo, o Incra passa a permitir a lavra garimpeira em sua área, que antes era ocupada por assentados, retirados do local. Famílias ouvidas pela reportagem não sabem para onde ir. Outros moradores da região estão apreensivos sobre o destino que será dado a seus lotes e os impactos que a produção de ouro possa trazer ao local.

O prazo do contrato de concessão da área é de 20 anos e pode ser prorrogado “desde que haja interesse das partes”. As famílias, que são parte interessada em qualquer projeto de assentamento, não foram ouvidas.

Incra Belo Sun Assentamento no Pará
Casas da Vila Ressaca, no Pará; Incra concordou em reduzir área de assentamento criado há 22 anos para abrir espaço para a mineração de ouro. Foto: Andrew Christian Johnson

Transações irregulares

Reportagem publicada nesta quarta-feira, 8, pelo Estadão revelou que a Belo Sun fez aquisições de uma série de lotes da reforma agrária na região, em transações irregulares . Pelo menos 21 lotes de famílias assentadas na Vila Ressaca, localizada no município de Senador José Porfírio, foram negociados diretamente pela empresa e os moradores. 

Estadão teve acesso a contratos nos quais a empresa desembolsa valores de até R$ 1 milhão e registra os atos em cartório. Neles, a Belo Sun estabelece, por exemplo, que os assentados transferem a posse da terra para a mineradora, livre de qualquer tipo de embaraço.

Para que um lote da reforma agrária seja vendido por seu morador, a lei impõe uma série de condicionantes, como o fato de o ocupante ter vivido sobre aquela terra pelo prazo mínimo de dez anos e o terreno ter a emissão de seu título definitivo de posse. Ocorre que praticamente nenhum lote da Vila Ressaca tem esse documento, que é emitido pelo Incra.

Um estudo sobre dessas operações foi realizado pelos pesquisadores da Universidade Federal do Pará (PA), Rosa Elizabeth Acevedo e Elielson Pereira da Silva. No levantamento concluído no ano passado, os pesquisadores trazem informações sobre cada uma das operações. “Os assentados do projeto de assentamento Ressaca assistem à compra de lotes para instalação do acampamento da mineradora, enquanto outros estão em estado de alerta pelas obras futuras, como o depósito de rejeitos”, declaram. “São diversas as restrições, somadas à redução da água dos igarapés e do próprio Rio Xingu, o desaparecimento dos peixes nos rios, as dificuldades para os agricultores vender seus produtos na Vila da Ressaca.”

Estadão apurou que essas transações passaram a ser investigadas pela Polícia Federal. Um inquérito policial foi aberto para apurar a comercialização de terras públicas com Belo Sun na região.

Defensoria Pública da União (DPU) vai acionar a Justiça Federal para pedir a anulação do contrato. “Está claro que esse contrato é nulo e tem que ser cancelado. Vamos pedir liminarmente a suspensão desse contrato e a sua anulação. Acionaremos a Justiça Federal em Altamira”, disse ao Estadão defensora regional de Direitos Humanos no Pará Elisângela Machado Côrtes.

Conflito de interesse

especialista Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), vê conflito de interesse na situação estabelecida entre o Incra e a Belo Sun. “Estamos diante da instalação de um profundo conflito de interesses dentro de uma autarquia cuja vocação primordial é promover a função social da propriedade, o que demanda imediata avaliação jurídica”, disse Bocuhy. 

A avaliação é de que o ato pode, inclusive, vir a ser alvo de questionamentos legais. “A iniciativa representa uma inversão de valores sobre as funções primordiais do Incra, ferindo os princípios de participação social implícitos em suas diretrizes e inaugurando um perigoso precedente ao visar lucratividade na concessão de exploração por capital estrangeiro de áreas destinadas ao assentamento agrário. A medida demonstra, acima de tudo, a insensibilidade e incompreensão que o governo tem sobre os problemas sociais do Brasil”, afirmou o presidente do Proam.

Fonte: Estadão