Vacina contra covid gera corrida por atestados de comorbidade e suspeitas de ‘fura-fila’

Casos são investigados em Estados como Amapá e Paraíba, mas também têm sido relatados por profissionais de saúde de outras partes do País
Estimativa federal é que 17,7 milhões de pessoas de 18 a 59 anos se enquadram no grupo prioritário de portadores de comorbidades.  Foto: Frank Augstein/AP Photo

Iniciada em grande parte do País nas últimas semanas, a vacinação da população com comorbidades contra a covid-19 tem gerado uma corrida por atestados médicos e até mesmo suspeitas de fraudes. Possíveis casos de “fura fila” são investigados em Estados como Amapá e Paraíba, mas também têm sido relatados por profissionais de saúde de outras partes do País.

As comorbidades listadas pelo Plano Nacional de Imunização (PNI) como prioritárias na campanha de vacinação contra covid-19 incluem doenças que atingem parte significativa da população, como diabetes e cardiopatias. Porém, em alguns casos, como no da hipertensão, a imunização é permitida apenas para pessoas que estão em estágios menos leves da patologia. 

Ao todo, a estimativa federal é que 17,7 milhões de pessoas de 18 a 59 anos se enquadram nesse grupo. A data de início da vacinação da população com comorbidades tem variado entre os Estados, que têm optado pela liberação aos poucos, geralmente pelas faixas etárias mais altas, como orienta o PNI. 

No Amapá e na Paraíba, procedimentos foram instaurados pelos Ministérios Públicos estaduais e o Federal, e seguem em apuração. Detalhes sobre os casos não foram divulgados pela assessoria de imprensa. 

Em João Pessoa, a prefeitura anunciou nesta semana que passaria a vacinar apenas pessoas com laudos médicos para comorbidades. O imunizado precisa deixar uma cópia do comprovante no local de imunização, que será encaminhada para apuração por uma comissão municipal e outros órgãos de fiscalização. 

A situação no Estado também motivou a publicação de um comunicado do Conselho Regional de Medicina (CRM). “É, obviamente, imprescindível também que as informações prestadas pelo médico sejam verdadeiras, conforme considera o Artigo 80 do Código de Ética Médica: ‘É vedado ao médico expedir documento médico sem ter praticado ato profissional que o justifique, que seja tendencioso ou que não corresponda à verdade’.

Em São Paulo, por sua vez, a prefeitura de Marília informou na quinta-feira, 13, ter identificado que moradores apresentaram receitas de familiares ou falsificadas para conseguir a imunização. “Estamos com uma equipe capacitada para analisar essas informações”, afirmou a coordenadora de imunização, Juliana Bortoletto, em comunicado do município.

No Rio, o prefeito de Barra Mansa, Rodrigo Drable (DEM), também relatou ter recebido denúncias de atestados e laudos falsos. Parte delas teria partido de médicos que se recusaram a fornecer o documento indevidamente, mas souberam posteriormente que um colega de profissão fez o oposto. 

“Fiquem atentos, senhores médicos, vou denunciar no CRM e no MP. É uma vergonha alguns médicos se prestarem a isso. Como também sempre foi uma vergonha médico se prestar a dar atestado falso para a pessoa faltar no serviço”, afirmou o prefeito em rede social.

Pressão

Profissionais de outros Estados também têm relatado a pressão de pacientes para a emissão de atestados de comorbidades. Ao Estadão, uma médica que atende em uma UPA de Belém e em uma UBS no interior do Pará relatou situação semelhante. 

“Por ser recém-formada, muitas pessoas acabam tentando se aproveitar disso para tentar passar na frente da fila da vacina, pedindo receita de medicamento para comorbidade e até mesmo pedindo atestado. Com certeza, teve uma procura muito maior depois que liberaram a vacinação para pacientes que têm comorbidades”, relatou. “Já houve casos até de colegas que foram oferecidas quantias em dinheiro para dar laudo, atestar comorbidades”.

Para evitar fraudes, ela sugere que a vacinação seja realizada no local onde o paciente com comorbidade costuma ser acompanhado ou que o nome dos pacientes aptos seja levantado pela rede ou pelo município. “Se não for desse jeito, acredito que tenha muita gente furando a fila, que tem muita gente com atestado para uma comorbidade que não existe”, diz. “Depois da vacinação para as comorbidades, houve uma procura muito maior dos pacientes que precisam comprovar que tinham essas comorbidades.”

Dois médicos de Sorocaba, no interior de São Paulo, afirmam ter sido procurados por pacientes com esse propósito. Um deles, que atua como clínico geral e geriatra, contou ter recebido a ligação de uma paciente de 58 anos pedindo um atestado para cardiopatia associada à hipertensão, mas não apresentava esse problema de saúde. 

Outro profissional, cardiologista, comentou que uma paciente de 51 anos foi ao consultório pedir um atestado para uma doença que não possui, pois alegou que precisava ser vacinada. Segundo ele, a mulher ficou insatisfeita com a recusa e chegou a dizer que esperava que fosse “mais amigo” e que procuraria um médico “mais compreensivo”.

Imunização contra a covid
Data de início da vacinação da população com comorbidades varia entre os Estados. Foto: Alberto Pizzoli/AFP

Relatos semelhantes também têm sido postados em redes sociais. “Antigamente, o pessoal queria atestado de boa saúde para praticar esportes e (prestar um) concurso público. Por causa da vacina, hoje a pedida é (por) atestado de doença. ‘Tem como me ver uma asma aí?’”, desabafou um profissional de saúde do Amapá.

Dificuldade. Por outro lado, parte da população também tem enfrentado dificuldades de obter toda a comprovação necessária para ser vacinada. Em Fortaleza, por exemplo, a pensionista Maria do Carmo Freitas, de 59 anos, teve a imunização negada porque a equipe não aceitou exames datados de agosto passado, embora a paciente tenha cardiopatia, estente (prótese interna que evita o entupimento de artérias) e ponte de safena. 

Ela e a filha Camila, de 27 anos,  foram atrás de documentação no hospital em que costuma se tratar de cardiopatias, mas também não conseguiram. Por fim, no dia seguinte, conseguiram o comprovante em uma unidade de saúde. 

“Acho que é necessário comprovar, mas houve um desencontro de informações muito grande”, comenta Camila. “No caso da minha mãe, foi uma coisa que me deixou muito preocupada, porque ela já tem uma saúde frágil, e eu ter de levá-la a um posto de saúde cheio de gente com casos de covid-19… Fiquei meio apreensiva.”

Em nota, a prefeitura local afirmou que cobra a apresentação “atestado, relatório ou prescrição médica indicando o motivo para a aplicação da vacina, com validade de até um ano”. 

Também procurado, o Ministério da Saúde salientou ter publicado uma nota técnica com orientações em 4 de maio, embora essa etapa da imunização tenha iniciado antes dessa data em parte do País. O documento aponta que o cadastro na unidade de referência é suficiente no caso de indivíduos que fazem o acompanhamento pelo SUS, enquanto os demais devem apresentar laudos, declarações, prescrições médicas ou relatórios. 

Mudanças. Ex-presidente da Anvisa e professor da USP e da FGVSaúde, o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto avalia que a forma com que o PNI foi desenvolvido impacta hoje na difusão de informação na pandemia: “Deveria ter colocado em consulta pública para a sociedade saber o que estamos fazendo e propondo. O fato de não fazer isso cria um clima de barata voa, de gente com dificuldade para demonstrar ter comorbidade e gente buscando facilidades”. 

Por essa falta de transparência, Vecina Neto diz haver muitas dúvidas entre as pessoas se são ou não de algum grupo prioritário, por exemplo. “Não resolveria 100%, mas, certamente, se fosse mais transparente, provavelmente teríamos comunicação diferente e o povo tomando atitudes menos ruins. Quando o problema começou no Estado, aí não tem jeito”, lamenta. “Está todo mundo perdido, isso é muito ruim.”

Para o sanitarista, com o abastecimento atual de imunizantes, a prioridade deveria ser dos trabalhadores de serviços essenciais, como de atendimento em supermercados e farmácias, por exemplo, que se expõem mais ao vírus por seguirem com o trabalho presencial em toda a pandemia. “Quem está em home office não deveria tomar neste momento (mesmo com comorbidade)”, avalia.

Já o presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o também médico Juarez Cunha, avalia que é correta a priorização das pessoas com comorbidades, por serem mais propensas ao desenvolvimento de casos moderados e graves da covid-19. “Chama  atenção desde o início da pandemia que pessoas com doenças cardiovasculares e diabetes são mais afetadas”, diz.

Ele considera, contudo, que a lista das comorbidades apontadas no PNI pode deixar de fora pessoas com outras situações de saúde que também estão em risco, como no caso de doenças graves. Além disso, destaca que no caso das pessoas com comorbidade mórbida, não há por que exigir a apresentação de atestado e afins, visto que o Índice de Massa Corpórea (calculado a partir do peso e da altura) pode ser aferido no local. 

Fonte: Estadão