Estimativas recentes publicadas pela imprensa italiana contavam 109 os padres e religiosos mortos pelo novo coronavírus no país. Apenas na Diocese de Bérgamo, na região da Lombardia — a mais afetada pela doença —, 24 padres morreram em um intervalo de 20 dias.
De um lado, mais pessoas necessitando de doações de comida, reflexo da crise econômica causada pela pandemia do novo coronavírus. De outro, a resposta solidária do povo que, mesmo em cenário adverso, está doando mais. Entre essas duas pontas, na linha de frente do trabalho assistencial da Igreja Católica, padres, frades e freiras e voluntários têm a rotina alterada em tempos de distanciamento social, máscaras nos rostos e doses de álcool em gel de cinco em cinco minutos.
“Aqueles que precisam estar nos trabalhos estão seguindo os cuidados de higiene, usando máscaras, mantendo o afastamento físico, etc”, comenta à BBC News Brasil frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos. “Acompanhamos muito de perto o que ocorreu na Itália e vimos como foi triste e drástico. Vários capuchinhos vieram a óbito, inclusive alguns jovens.”
Estimativas recentes publicadas pela imprensa italiana contavam 109 os padres e religiosos mortos pelo novo coronavírus no país. Apenas na Diocese de Bérgamo, na região da Lombardia — a mais afetada pela doença —, 24 padres morreram em um intervalo de 20 dias. Balanço divulgado pela Conferência Episcopal Italiana confirmou serem “mais de 100” as vítimas dentro do clero. Essas histórias assustam e levam os religiosos brasileiros a tomarem cuidado. “A experiência da pandemia do coronavírus na Itália está sendo muito desafiadora”, comenta à reportagem o padre Denilson Geraldo, diretor do Instituto San Vincenzo Pallotti, de Roma.
A preocupação motivou até um posicionamento oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em orientações publicadas na última segunda (20) em conjunto com a organização Cáritas Brasileira, a entidade afirmou que “é fundamental a garantia da dignidade humana” e “o envolvimento da comunidade é crucial”. Mas ponderou a respeito dos riscos. “Esse envolvimento deve ocorrer de maneira cuidadosa para não expor as pessoas que querem ajudar nem as pessoas que estão precisando de ajuda.”
Para o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, isto é inédito: a Igreja pedindo um freio na ajuda, “porque uma ação social mal feita disseminaria ainda mais o vírus”.
“Muitas comunidades estão se sentindo ‘ociosas’, digamos, porque antes tinham uma série de iniciativas, missas, cursos, grupos de oração, e agora tudo o que podem fazer se limita aos encontros online. Às vezes as pessoas começam a se organizar em forças-tarefa de ação social sem levar em conta vários fatores: por exemplo, se os funcionários não podem mais ir às paróquias, quem vai abrir e fechar a igreja? Quem vai armazenar os alimentos? Quem vai entregar as cestas básicas e como isso vai ser distribuído?”, comenta Domingues à BBC News Brasil.
“A CNBB lançou esse alerta, aparentemente pedindo mais cautela nas ações sociais da Igreja. É a primeira vez que vejo isso: a Igreja dizendo ‘calma, às vezes não fazer nada é a melhor coisa’ porque não podemos fazer alguma ação solidária só para acalmar nossa vontade de ajudar, mas sim para realmente ir ao encontro das necessidades dos outros sem se colocar em risco. Por exemplo, idosos e pessoas com fator de risco não devem participar dessas atividades.”
A CNBB não tem nenhum balanço consolidado de quantos religiosos brasileiros já foram infectados pelo coronavírus. Levantamento da BBC News Brasil, consultando as principais dioceses brasileiras, contudo, apontam que os casos começam a ganhar proporções. Até o momento, pelo menos dois religiosos no Brasil já morreram em consequência do coronavírus.
No dia 4, morreu em Recife (PE) o padre Roberto Carlos Vieira Nunes. Ele tinha 54 anos. Arcebispo emérito da Paraíba, Aldo Pagotto morreu no dia 14 — tinha 70 anos e estava internado em um hospital de Fortaleza, Ceará.
Há casos de padres infectados e em tratamento nos estados de São Paulo (ao menos dois frades franciscanos), Bahia (dois padres em Salvador), Alagoas (um padre de 84 anos foi internado no início do mês), Paraná (uma freira que trabalha em hospitais) e Amazonas (um padre).
Na tarde de sábado (25), o papa Francisco telefonou para o arcebispo de Manaus, Leonardo Steiner, para saber notícias sobre a pandemia na região. O sumo pontífice demonstrou preocupação sobretudo com os povos indígenas, ribeirinhos e pobres da Amazônia, agradeceu o trabalho de voluntários leigos e religiosos no combate ao coronavírus e disse que todas as vítimas e suas famílias estão em suas orações.
Bênção de máscara
Reitor da Casa de Formação São Caetano e vigário da Paróquia de São Geraldo, em Guarulhos, na Grande São Paulo, o padre Lucas Gobbo achou por bem, desde a chegada do novo coronavírus ao Brasil, dispensar do trabalho assistencial da paróquia todos os voluntários que integram grupos de risco — idosos ou com doenças crônicas. As cestas básicas destinadas a famílias pobres da comunidade, antes retiradas na igreja, passaram a ser entregues em domicílio. E ele próprio juntou-se aos voluntários no trabalho.
Antes da pandemia, as cestas eram fornecidas uma vez por mês. Diante da crise, as doações passaram a ser quinzenais. “Antes, eram 20 famílias cadastradas e assistidas. Agora já estamos chegando a 50”, conta ele. No kit de cada família, além dos alimentos, produtos de higiene como sabão passaram a ser essenciais.
A solidariedade também cresceu. “Alguns paroquianos estão trazendo máscaras, tanto para efetuarmos nosso trabalho, como para doarmos. E, dias atrás, estávamos fazendo a entrega dos alimentos em uma a casa e a pessoa atendida, em vez de apenas agradecer, nos deu um pacote de máscaras caseiras, todas higienizadas, para repassarmos a quem estivesse precisando”, relata o padre. “Ou seja: se dá, mas também se recebe.”
Gobbo ressalta que, na linha de frente, os cuidados precisam ser redobrados. Não só para que os voluntários não se infectem — mas também para que eles não se tornem vetores da doença, espalhando-a ainda mais. Desde que os casos começaram a acontecer no Brasil, todos os pacotes recebidos pela igreja para a doação estão sendo higienizados, um a um, com álcool em gel. E o ritual dos voluntários, todos usando máscaras, inclui uma dose do produto nas mãos entre uma entrega e outra.
Não há contato com os beneficiados. “Deixamos no portão e ficamos a mais um metro de distância até que a família venha pegar o pacote. Nosso contato não é direto”, diz ele.
Nem mesmo a bênção sacerdotal é feita como antes. “Ao me verem, sabendo que sou padre, muitos pedem a bênção para eles, para a família, para a casa. Eu faço, claro, mas mantenho uma distância.” A despedida também de longe. “Costumo falar: ‘Deus abençoe, coragem, força e perseverança: se Deus quiser a gente vai vencer esta’. Estamos tomando todos os cuidados”, acrescenta o religioso.
Lições italianas
De Roma, o padre Geraldo avalia que todo o cuidado deve mesmo ser tomado por seus colegas no Brasil. Ele cita as estimadas mais de 100 mortes entre religiosos italianos mas ressalta que, mesmo assim “muitos padres, religiosas e leigos continuam oferecendo ajuda aos pobres”, distribuindo alimentos, levando as compras dos supermercados à casa dos idosos que não podem sair e ajudando famílias em preencher formulários para receber benefícios sociais do governo italiano.
“Os funerais são apenas uma benção na porta da Igreja com três ou quatro pessoas da família. Não estão sendo celebrados casamentos, batizados e a primeira comunhão das crianças.”
“A pandemia está exigindo reaprender a valorizar o silêncio, a vida familiar com sua simplicidade e austeridade compartilhada. A vida frenética e egoísta nos impede do real encontro com Deus e do valor da solidariedade”, opina o padre. “Aqui na Itália já se discute sobre a gradual reabertura, mas a pandemia está nos ensinando o valor da vida como um dom de Deus; o valor da saúde física, mental e espiritual que somente a partir da convivência em casa com a família é possível conquistar.”
Se há algo bom nesse cenário, avaliam os religiosos, é que a solidariedade humana parece estar mais aguçada. Todos os ouvidos pela reportagem relataram aumento também no número de doações no período. “Diversos grupos — ONGs, empresários, sindicatos, pessoas — têm nos procurado para fazer doação”, concorda o padre Ryan Matthew Holke, missionário da Associação Pública de Fiéis de Direito Diocesano e pároco da Paróquia São Maximiliano Maria Kolbe, em São Bernardo do Campo, na grande São Paulo.
Uma tenda para os pobres
Reconhecidos historicamente pela assistência aos moradores de rua, os frades franciscanos estão no epicentro dos trabalhos juntos aos mais necessitados nestes tempos de pandemia no centro de São Paulo. Trata-se de um problema sensível, já que a população de desabrigados na capital paulista vem aumentando. Segundo dados divulgados no início do ano, são quase 25 mil sem-teto na cidade — em 2015, eram 16 mil.
“Neste tempo de coronavírus houve um aumento exponencial das necessidades”, conta à BBC News Brasil frei Diego Melo, que atua no Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras). Segundo seus dados, antes da pandemia eram 600 atendidos diariamente, com almoço e chá da tarde — e, em casos de necessidade, atendimento psicológico. Agora, “estamos atendendo 3,7 mil pessoas por dia, em média. E a demanda está sendo cada dia maior. São pessoas em situação de rua, mas começa também a crescer o número de pedintes, pessoas que até têm uma casa de aluguel, só que estão tendo de optar por pagar ou aluguel ou por usar o dinheiro para comer. São pessoas que estão a um passo de ir para a situação de rua”, conta.
“E como não podíamos ter grandes aglomerações dentro do espaço onde a gente atendia, montamos uma tenda, em um espaço de 200 meros quadrados no Largo São Francisco.”
Melo ressalta que todos os cuidados vêm sendo tomados para “minimizar os perigos de contágio”. “Usamos todos os EPIs (equipamentos de proteção individual), temos um técnico em enfermagem que nos orienta. E quando alguém da linha de frente apresenta algum sintoma, é retirado imediatamente e vai para a quarentena”, conta. “Temos dois casos confirmados no grupo, já estão isolados. Ambos ficaram internados por mais de uma semana mas agora passam bem.”
Em comunicado divulgado no último dia 14, o Sefras enfatizou que “todos os frades, trabalhadores e voluntários” que atuam “na linha de frente na ação humanitária não estão enfermos e têm sido constantemente orientados por profissionais qualificados, utilizando os Equipamentos de Proteção Individual adequados para cada tipo de atividade”, que os religiosos têm observado “os cuidados de higiene e distanciamento” e que “dois frades da Fraternidade do Convento estão hospitalizados com confirmação da covid-19”.
“Um terceiro frade com sintomas, mas sem confirmação por teste, cumpre isolamento dentro do próprio convento, em seu quarto, acompanhado à distância por sua médica de rotina. Os outros, alguns com sintomas mais leves, também fazem o isolamento dentro de casa e seguem acompanhados”, diz a nota.
De São Bernardo, padre Holke lembra que sua comunidade “já tem casos confirmados e outros suspeitos, embora os números ainda sejam pequenos”. E o momento é de conscientização. “Na paróquia falamos sobre a seriedade da situação e os cuidados que se deve ter”, diz. “A diocese tem feito um esforço grande neste sentido. Recebemos uma grande doação de álcool, 4 mil litros. O material será distribuído para as entidades que cuidam de idosos e dos irmãos da rua, além de famílias carentes assistidas.”
Conhecidas pelo trabalho de assistência no bairro dos Campos Elíseos, região da cracolândia, no centro de São Paulo, as freiras do Centro de Convivência São Vicente de Paulo também viram sua rotina alterada. Desde que a pandemia chegou, a instituição, mantida pelas Irmãs Vicentinas de Gysegem, não abre mais as portas para 700 necessitados por dia — que ali tomavam banho, barbeavam-se e faziam refeições. Agora os beneficiados recebem quentinhas e, para outros cuidados, apenas grupos pequenos são autorizados a entrar. Conforme explicou à reportagem a irmã Marira Enir Loubert, “a dinâmica da casa mudou, mas estamos fazendo o possível para não deixar os sofredores de rua mais vulneráveis do que já estão”.
“As pessoas fazem fila para primeiro higienizar as mãos com álcool em gel e prosseguem para receber a marmita. Assistentes sociais dão atendimento presencial, naturalmente mantendo a distância necessária”, relata.
Fonte: BBC Brasil