‘Estadão’ acompanhou missão da Marinha no coração da Amazônia; militares fazem busca por garimpeiros ilegais e levam ajuda médica a comunidades ribeirinhas
Por Gonçalo Junior
Bom dia, peixe-boi da Amazônia”, deseja a voz forte e empostada no alto-falante do navio-hospitalar da Marinha às 6 horas da manhã. Pouco antes, havia soado um apito longo e fino. Eu sabia que os militares costumam madrugar, mas ainda tive esperança que o sono duraria um pouco mais.
O sol emerge do Rio Branco, cercado da imensidão verde no coração de Roraima. Mas surpreendente mesmo é a trilha sonora que acompanha a saudação matinal: o pagode Reinventar, do cantor Belo.
A canção romântica até causa polêmica entre os tripulantes, principalmente quando peço para registrar em vídeo. “Vão deixar gravar o Belo?”, brinca um militar. A escolha da trilha sonora da alvorada é do tripulante de serviço. Sem censura.
Preferências à parte, a música faz parte do cotidiano do navio que leva atendimento médico à Terra Yanomami, maior reserva indígena do País. A melodia vem do aparelho celular do próprio tripulante e invade a Praça de Armas, sala de estar e jantar dos oficiais. O pagode dá uma atmosfera familiar ao local, a casa dos militares durante 20 dias, um mês ou até mais – depende da missão.
O Estadão acompanhou, em junho, operações da Marinha na região do Rio Branco, em Roraima, em uma das áreas mais isoladas da Floresta Amazônica. A reportagem embarcou no navio-patrulha, que rastreia garimpeiros ilegais, e na embarcação hospitalar, o Carlos Chagas, onde estamos agora.
“Navio é o quartel de quem trabalha na Marinha.”
Igor Manoel Brum
Comandante do navio hospitalar Carlos Chagas
A mobília de madeira e dois peixes-boi de pelúcia, que descansam no sofá marrom escuro, ajudam a dar essa cara de lar ao navio.
O bicho é uma espécie de mascote do navio. “O peixe-boi é de cor cinza, couraça grossa e resistente, capaz de singrar toda a extensão da bacia amazônica, qualidades que se assemelham às do navio de assistência hospitalar Carlos Chagas”, diz o folheto que me entregaram assim que entramos no navio.
Nos momentos de descontração, há tempo para bater papo e até arriscar a sorte em um jogo de tabuleiro.
“Os navios têm alma”, resume o capitão de corveta Igor Manoel Brum, comandante da embarcação construída pelo Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro há 40 anos. “Eles guardam um pouco da tripulação que passa por lá.”
Estrada na correnteza
O navio não balança muito. Em alguns momentos, sente-se uma leve oscilação, mas não precisamos firmar o pé nem segurar nos corrimãos. A prova da estabilidade é uma espécie de cristaleira onde há algumas taças penduradas de cabeça para baixo, outro cantinho que faz lembrar a casa da gente.
Os tripulantes contam que, em outros navios, todos os móveis são presos ou precisam ser guardados com cuidado. Agora, quem toca é Marília Mendonça, sertaneja que morreu em 2021 após um acidente aéreo. Ela canta que ninguém vai sofrer sozinho.
Embora a navegação seja relativamente tranquila na superfície, o Catrimani tem outros desafios que não são visíveis a olho nu: o solo do rio muda constantemente por causa da força da correnteza. Isso dificulta a navegação devido à facilidade de encalhe das embarcações, mesmo as de pequeno porte.
Para evitar acidentes, o navio Rio Negro – chamado tecnicamente de Aviso Hidroceanográfico Fluvial – navegou meses antes por essas águas para mapear e medir profundidades. Ele definiu uma passagem segura, uma espécie de trilha no meio do rio, para navios de maior porte, como o Carlos Chagas.
Quando olhamos pela janela – ou melhor, pela vigia, como manda o jargão náutico -, temos a sensação de que as águas do Catrimani são um pouco esbranquiçadas. São mesmo.
A cor da água de um rio é o resultado de transformações físicas e químicas durante o escoamento superficial e subterrâneo, como explica Fábio Luiz Wankler, geólogo da Universidade Federal de Roraima (UFRR). É um fenômeno natural, mas que sofre interferência da ação humana.
“Por nascer em área de geologia diversificada e com presença de garimpo, a água tem cor branca”, descreve o especialista. Um dos principais poluentes da mineração ilegal é o mercúrio, que mata os peixes. Com 565 quilômetros, o Rio Branco tem sua foz no Rio Negro, na divisa de Roraima e Amazonas.
Não é sempre que os navios passam por aqui. A navegabilidade ocorre só na estação chuvosa da região, entre abril a agosto, limitada até ao Porto de Caracaraí. Acima, o rio só é navegável com voadeiras, pequenos barcos e lanchas, pois apresenta muitas corredeiras e trechos rasos.
Veja o trajeto em detalhes, no link:
Percurso de 362 km foi percorrido em dois navios da Marinha.
- Dia 1
Percurso de 8 horas no navio-hospitalar Carlos Chagas - Dia 2
Atendimento médico às comunidades ribeirinhas e povos indígenas - Dia 3
Fiscalização do navio-patrulha Raposo Tavares contra garimpeiros - Dia 4
Retorno com paradas para patrulhamento com lanchas
“Nossas operações são determinadas pelos regimes dos rios”, diz Thiago Delorenzi, comandante do Raposo Tavares, o navio-patrulha.
A estiagem na floresta, a mais intensa da história em algumas partes, já afeta também os rios de Roraima. O nível do Rio Branco, na estação de Boa Vista, está em 1,34 metros. “O período crítico costuma começar em fevereiro. Com a marca atual, o risco é alto de outra seca intensa.”
Segundo o Cemaden, órgão federal de monitoramento, o País sofreu neste ano a pior falta de chuvas desde o início das medições do governo, há sete décadas. A área de seca se estendeu da Amazônia ao Paraná. Com a crise climática, fenômenos desse tipo ficarão mais intensos e frequentes.
Reportagem: Gonçalo Junior; Editor de Metrópole: Victor Vieira; Editora de infografia: Regina Elisabeth Silva; Editores-assistentes de infografia: Adriano Araujo e William Mariotto; Fotos: Daniel Teixeira Designer multimídia: Lucas Almeida; Infografistas multimídia: Edmílson Silva, Marcos Müller e Mauro Girão.
Fonte: Estadão