Imprensa e Bolsonaro: o que está em jogo na batalha pela opinião pública

“O conflito atual entre imprensa e governo é muito mais do que um mero choque de interesses político-eleitorais”.
(Foto: Reprodução YouTube)

por Carlos Castilho

Muita gente na imprensa e no jornalismo pode não gostar e até protestar, mas o fato é que os três principais jornais do país e a rede de televisão de maior audiência nacional são hoje mais sistemáticos, contundentes e ameaçadores  do que os partidos de oposição no que se refere ao patrulhamento do governo do presidente Jair Bolsonaro.

É algo surpreendente porque nunca estes veículos de comunicação, que lideram a agenda jornalística nacional, atuaram de forma tão persistente e implacável como agora na relação com o poder político federal. Trata-se também de um fato que gera reflexões sobre o relacionamento entre a mídia e o Palácio do Planalto, bem como sobre a forma como as redes sociais virtuais entraram no jogo político, influindo na produção da agenda informativa nacional, regional e local.

O posicionamento dos principais conglomerados midiáticos brasileiros ficou particularmente claro agora no episódio da divulgação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril, em Brasília. Folha de S.Paulo, TV Globo, Estado de São Paulo e O Globo esmiuçaram todos os detalhes de um evento que escancarou a intimidade do governo Bolsonaro e foram especialmente implacáveis na apresentação de evidências refutando as principais queixas do presidente e de vários ministros em relação às acusações de interferência indevida do presidente na Polícia Federal.

A cobertura do evento nos telejornais da Globo foi didática no sentido de explorar, nos mínimos detalhes, a desastrada performance presidencial, explorando até olhares e entonações para mostrar como Bolsonaro usou o encontro para tentar demonizar o agora ex-ministro Sérgio Moro. Os editores dos telejornais se preocuparam em desmontar argumento por argumento na fala não apenas do presidente, como também dos ministros que canhestramente tentaram socorrer seu chefe quando este pediu apoio a seus subordinados.

A linha editorial da Globo no episódio da reunião do dia 22 de abril deu mais atenção ao didatismo quase no pedagógico desmonte da frágil argumentação presidencial do que à ao estilo narrativo usual nas matérias transmitidas pela emissora. Ela mais parecia um advogado do que um observador, comportamento que pode escandalizar amigos e desafetos da rede televisiva, mas que lhe confere uma contundência crítica superior até mesmo aos partidos de oposição, tanto de centro como de esquerda.

Já o jornal Folha de S.Paulo, em sua cobertura diária, tem dado mais importância à gestão econômica do governo federal, linha também seguida pelo Estadão. A Folha amplia o leque de seu conteúdo editorial ao explorar alternativas pouco mencionadas pelo segmento empresarial e pelos economistas do governo, como propostas de renda mínima universal, estratégias desenvolvimentistas e o papel do Estado brasileiro na atual conjuntura. O jornal O Globo, por seu lado, optou por valorizar o lado humano da pandemia do Coronavírus numa estratégia para mostrar a insensibilidade governamental diante do drama vivido por milhões de brasileiros.

O fator Moro

A estratégia das Organizações Globo está claramente orientada a priorizar a defesa da posição do ex-ministro Sérgio Moro, cuja imagem pública está muito mais próxima daquilo que o conglomerado considera como politicamente correto. Ao mesmo tempo, tanto o jornal como a rede de TV usam o avanço das mortes causadas pela Covid-19 como estratégia para evidenciar a desorganização e desorientação do governo Bolsonaro no trato da pandemia.

Diante da fragilidade e desorientação dos partidos oposicionistas de centro e de esquerda, a grande imprensa do Rio e São Paulo está funcionando como o principal núcleo de oposição aos seguidores do bolsonaro-olavismo no país¹.

O antagonismo entre imprensa e o Palácio do Planalto não é casual e nem fortuito. Ele responde a uma nova configuração política no país, causada pela ascensão de grupos de extrema direita que ocuparam o vácuo deixado pela esquerda depois que o Partido dos Trabalhadores foi afastado do poder.

A tropa de choque do governo reúne desde grupos religiosos evangélicos até milicianos e grupos paramilitares, passando por uma ampla massa de pessoas desiludidas com o fim das vantagens obtidas nos 14 anos de lulismo. O binômio bolsonaro-olavista quer a dissolução das estruturas políticas, econômicas, sociais, culturais e até ambientais integradas ao que se convencionou chamar de establishment, o que vai frontalmente contra tudo o que a grande imprensa tupiniquim sempre defendeu.

O conflito atual entre imprensa e governo é muito mais do que um mero choque de interesses político-eleitorais. Mexe com estruturas e valores muito mais profundos e que têm a ver com visões de mundo antagônicas. O desprezo da extrema direita pela lógica política tradicional, pela coerência, credibilidade, ética formal, normas democráticas, direitos humanos e valores republicanos visa gerar um clima de instabilidade e incertezas.

É claro que a grande imprensa, como parte importante do establishment, não pode compactuar com uma proposta como esta porque vai contra a sua própria existência. Por isto ela não tem opção fora do enfrentamento, mesmo que este implique um desgaste doloroso num momento em que a imprensa vive sua pior crise dos últimos 200 anos, por conta das transformações causadas pela chegada das novas tecnologias digitais de informação e comunicação.

Observatório da Imprensa

¹ Coligação informal reunindo o populismo armamentista  de Jair Bolsonaro, com o sectarismo ideológico de Olavo de Carvalho, guru intelectual de ministros como o das Relações Exteriores, Educação, Meio Ambiente e os filhos do presidente.

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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.