Aumento do número de não-votantes gera baixa representatividade da população nos Poderes e enfraquece o processo democrático
O primeiro turno das eleições 2020 registrou o maior índice de abstenção eleitoral dos últimos anos, com 23,14% dos eleitores aptos não comparecendo às urnas no dia da votação, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Algumas capitais, como Porto Alegre e Rio de Janeiro, registraram um porcentual de não-votantes maior que a média nacional, com 33,08% e 32,79%, respectivamente.
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O número de abstenções é superior aos registrados nos últimos 12 anos. No período, a maior taxa de não-votantes havia sido registrada na eleição presidencial de 2018, com 20,33% – contra 17,58% em 2016, 16,41% em 2012 e 13% em 2008. Apesar disso, o resultado foi comemorado pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, que considerou a abstenção compatível com o cenário da pandemia do novo coronavírus no País. “Extraordinário porque nas últimas eleições (2018) foi mais de 20% e nesta eleição, 23%, em meio a uma pandemia. Mais um fator que precisamos comemorar”.
Mas o que é abstenção eleitoral, quais as suas causas e que impactos ela tem na democracia brasileira?
Especialistas ouvidos pelo Estadão explicam que o aumento do número de não-votantes tem diversos fatores, como a perda de confiança da sociedade nas instituições democráticas, e podem causar uma crise de representatividade, com a população não reconhecendo suas próprias demandas nos candidatos eleitos. Entenda ponto a ponto:
O que é abstenção eleitoral?
O glossário do TSE define a abstenção eleitoral como o termo usado para definir a não-participação do eleitor no ato de votar. O índice de abstenção eleitoral, por sua vez, é calculado como o porcentual de eleitores que, tendo direito de votar, não se apresentam às urnas. É diferente do caso do eleitor que vota em branco ou anula o voto.
O que causa a abstenção eleitoral?
Especialistas ouvidos pelo Estadão foram unânimes em afirmar que a pandemia do novo coronavírus teve um peso relevante para o número elevado de não-votantes no primeiro turno em 2020. No entanto, apesar da relevante influência da crise sanitária como aspecto conjuntural desta eleição, todos apontam que o caso brasileiro também está inserido em um fenômeno global: a crise dos sistemas democráticos.
Segundo o cientista político Carlos Melo, professor do Insper, a crise da democracia tem origem nas transformações sociais, tecnológicas e no mundo do trabalho nas últimas décadas, que reconfiguraram a atuação dos setores econômicos e do mercado de trabalho, criando um grande contingente de pessoas sem emprego e cada vez mais vulneráveis, que não encontraram na política ou no Estado a solução para seus problemas cotidianos.
“Quem não conseguiu acompanhar o processo foi esquecido pela política. O Estado não deu resposta para eles, a política não deu resposta para eles e a democracia não deu resposta para eles”, disse o professor. “A política passou ao largo de todo esse processo, e quem foi esquecido passou ao largo da política.”
O professor José Álvaro Moisés, cientista político da Universidade de São Paulo (USP), também entende o aumento da abstenção eleitoral como um efeito da crise das instituições democráticas. No contexto nacional, o professor aponta que a instabilidade política enfrentada pelo País desde 2013 provocou o aumento da desconfiança da população no sistema e em seus líderes.
“Houve muita descrença e desconfiança (desde 2013) das instituições, dos partidos e inclusive dos líderes, que se auto-intitulam democráticos, e não foram capazes de dar uma explicação, por exemplo, do envolvimento de alguns de seus partidos em corrupção. Isso levou a um descrédito que afastou muitas pessoas do processo.”
Moisés também aponta que a falta de mecanismos de diálogo entre a população e os Poderes, a falta de transparência e clareza na divulgação dos atos públicos e a própria complexidade de alguns processos no sistema democrático – como o voto proporcional e a variedade de âmbitos em que são tomadas as decisões legislativas, judiciárias e mesmo administrativas, contribuem para o afastamento da população.
Quais as consequências da abstenção eleitoral?
A primeira consequência do não-comparecimento às urnas, de acordo com o cientista político Rodrigo Prando, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é a delegação da escolha individual do eleitor a outras parcelas da população, que nem sempre representam sua posição pessoal.
“Quando você se abstém de exercer o direito de votar, você está deixando que outros decidam por você. Você está se abstendo das questões sociais, das questões políticas e do próprio processo democrático.
Esse processo é chamado por José Álvaro Moisés de vácuo de participação política. “As pessoas muitas vezes não têm plena consciência de como isso afeta a qualidade de vida em suas cidades, Estados e no País. Não votar significa deixar que outros escolham a direção a ser tomada pelo Poder Público”.
Além da crise de representatividade gerada, a abstenção eleitoral também tem efeitos práticos para os representantes eleitos e para a o processo democrático. Carlos Melo aponta, por exemplo, que mesmo candidatos à Presidência e a governos estaduais – como Jair Bolsonaro, em 2018, e João Doria, em 2016 – foram eleitos tendo apoio da minoria da população, mas alcançaram a maioria dos votos válidos (excluídas as abstenções, brancos e nulos).
“Não se pode falar em uma crise de legitimidade, porque o que conta são os votos válidos e as regras do jogo são seguidas. No entanto, há uma crise de credibilidade do candidato vencedor, que assume o mandato tendo apoio minoritário, o que o impede, muitas vezes, de adotar medidas mais arrojadas”.
Todos esses fatores somados, apontam os especialistas, criam um ciclo que se retroalimenta, aumentando o distanciamento da população e da classe política representada, pressionando os limites democráticos.
Alta abstenção é sempre um sintoma de insatisfação popular?
Nem sempre. De acordo com José Álvaro Moisés, o oposto aconteceu na Europa e nos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra, quando o nível de satisfação da população com suas democracias acabou impulsionando a não participação.
“Em alguns dos principais países ocidentais, o direito de não votar esteve associado, neste período, ao bom funcionamento da democracia. O eleitor, satisfeito com os rumos que seu país estava tomando, optava por não votar e deixar que a maioria determinasse o rumo”.
Os efeitos adversos da prática, no entanto, acabaram chegando mesmo nestes países. Um exemplo recente citado pelo professor é o Brexit. O plebiscito, que iniciou o processo de saída do Reino Unido da União Europeia, foi definido pela minoria da população, uma vez que boa parte dos britânicos não compareceu às urnas.
A crise dos sistemas democráticos tem como único efeito a abstenção?
Não. Como explica Carlos Melo, parte das pessoas “ignoradas” pela política nacional opta, sim, pela abstenção. Entretanto, outro efeito dessa desconfiança das instituições e da crise de representatividade é a busca por candidaturas extremistas ou populistas.
“Essas pessoas, que já estão apartadas da economia e vivendo uma crise terrível – sem a proteção nem do Estado, nem da política e nem da democracia – revoltam-se. Uma parte silencia, mas outra vota nas candidaturas mais radicais, populistas e demagógicas”, diz o professor.
Foi essa negação da política, segundo Melo, que conduziu figuras como Donald Trump (EUA), Viktor Orbán (Hungria), Rodrigo Duterte (Filipinas) e o próprio Jair Bolsonaro chegassem ao poder.
“O problema é que esse caminho populista e demagógico não trouxe a solução para o problema”, diz Melo. Essa negativa, segundo o professor, pode gerar tanto uma nova radicalização do voto pelo eleitor, como a desilusão com o processo democrático, impulsionando ainda mais a abstenção.
A abstenção eleitoral tem impacto econômico?
Sim. Um levantamento feito pelo TSE aponta que nas eleições de 2010 – quando a abstenção foi de 18% no primeiro turno e 21,5% no segundo – o prejuízo financeiro ao País foi de R$ 195,2 milhões. O montante, segundo a Justiça Eleitoral, baseia-se no custo médio que cada voto tem para os cofres públicos, calculado em R$ 3,63 reais por eleitor naquele ano.
Fonte: Estadão