Nem sempre o mais caro é a melhor opção; tudo vai depender do nível do corredor e dos objetivos do treino
Danilo Casaletti , Especial para o Estadão
Há um meme em que um corredor amador chega a uma loja para comprar um tênis e, ao ser abordado pelo vendedor que lhe oferece ajuda, diz: eu sei mais do que você, pode ir. O chiste serve para ilustrar como cada vez mais os praticantes de corrida têm se dedicado a entender o modelo adequado de calçado para a prática esportiva.
Entretanto, diante de tantas opções disponíveis no mercado, com diferenças, nem todo mundo sabe se decidir entre um modelo e outro – e essa dúvida é bastante normal, não só entre os iniciantes, mas também aos mais experientes, sobretudo porque a indústria lança novidades a todo o momento.
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O designer Caio Absy, de 35 anos, começou a correrem 2012. Parou e passou a praticar mountain bike. Voltou a se dedicar com afinco aos treinos de corrida em 2019, sozinho ou em grupo. Ele diz que no início era, de fato, difícil saber qual tênis comprar. À época, ele seguia indicações de amigos que também corriam. Absy conta que quando retornou à prática, há cerca de três anos, encontrou um cenário bem diferente. Perfis em redes sociais e canais no YouTube passaram a ser fontes de informação sobre o tema.
“Não sigo 100% porque o que funciona para alguém pode não ser bom para mim. Também há a questão dos patrocínios (dos influencers). Mas esses canais ajudam bastante. Busco sempre uma referência, sobretudo depois que comecei a treinar para maratonas porque não sou um corredor leve. Outra dica é olhar os comentários para ver o que diz quem já usou o modelo”, diz.
O designer diz que atualmente, quando escolhe um tênis, procura principalmente um bom custo-benefício e durabilidade – alguns modelos chegam a custar R$ 2 mil. “O preço é importante. E dentro disso, penso no conforto. Ele é indispensável”, diz Absy, que prefere lojas multimarcas, nas quais, segundo ele, os vendedores estão mais preparados e não irão mostrar apenas o modelo mais caro de uma marca específica.
Especialista em corrida, o jornalista Sérgio Rocha é dono do canal Corrida no Ar no YouTube desde 2013, com mais de 310 mil seguidores. Além de dicas e entrevistas sobre o esporte, Rocha faz reviews de modelos de tênis e diz não aceitar patrocínio para falar sobre o produto.
Acessório do corredor
Rocha afirma que o tênis sempre foi o principal acessório do corredor. Entretanto, para ele, a grande revolução foi o avanço do uso da placa de fibra de carbono, inserida no solado do tênis, que levou o maratonista queniano Eliud Kipchoge a bater seu próprio recorde na Maratona de Berlim, em 2018.
“O tênis passou a ser um equipamento. A placa de carbono, de fato, muda a performance do corredor, sobretudo o de elite. Ele economiza mais energia e sua recuperação é mais rápida depois da prova. Nunca algo mudou tão repentinamente o desempenho dos atletas”, explica.
O modelo que Kipchoge usava era um Vaporfly 4% da Nike, marca que o patrocinava. A novidade não demorou a chegar no mercado e conquistar os corredores amadores. Fabricantes como Puma, Adidas, New Balance, Fila e Olympicus também lançaram modelos com placa de carbono.
“Inverteu-se um pouco a lógica. Antes, poucos amadores usavam os tênis dos corredores de elite, pois o achavam muito baixinhos e leves. Quando a Nike chegou com esse modelo, que os atletas bateram recordes, aconteceu o mesmo que já acontecia com as chuteiras de jogadores. As pessoas passaram a querer”, diz.
Antes da compra
A corredora brasileira Andreia Hessel, campeã da Maratona de São Paulo 2018, que foi atleta amadora antes de se profissionalizar, há nove anos, descobriu com o passar do tempo como escolher o modelo ideal. Atualmente, ela tenta equilibrar conforto e tecnologia. Porém, para além disso, ela percebeu que era preciso treinamento – e cuidado – para usar os calçados considerados de alta performance disponíveis no mercado.
“Eles são instáveis. O amortecimento, a placa de carbono e a espuma (que acomoda essa placa e faz com que ela proporcione a responsividade) oferecem conforto, mas há essa instabilidade. Os estudos para o desenvolvimento desses tênis foram feitos com atletas. Como já fui amadora, posso dizer: os amadores correm o risco de ter alguma lesão se não fortalecerem os pés e tornozelos”, diz.
Andreia, que se prepara para o Sul-Americano de Meia Maratona, explica como usar esses modelos. “Gosto de ver os amadores experimentarem todas essas tecnologias. Mas meu conselho é não usar esses tênis (de alta performance) no dia a dia de treinos. Eles são caros. Não compensa gastá-los em treinamentos menos intensos. Deixo-os guardados para provas ou treinos mais específicos, aqueles de velocidade.”
Os preços, de fato, são altos. O modelo ZoomX Streakfly, que a Nike lançou em abril como uma evolução do Vaporflyr, custa até R$ 1 mil. Os novos exemplares da Asics, o MetaSpeed Sky +, que Andreia aponta como seu favorito, e o Edge +, também com a placa de carbono, chegam a R$ 1.900.
Para quem está começando na corrida, a sugestão é adquirir os modelos chamados de “entrada”. Marcas como Fila, Olympikus (o Grafeno, com carbono, custa R$ 700) e a Decatlhon costumam ter modelos mais acessíveis, sem perder a qualidade. Outra dica é procurar por modelos de coleções passadas.
Pé no freio
A professora da Universidade de São Paulo Isabel Sacco, pesquisadora da área de biomecânica, afirma que um calçado de corrida precisa idealmente diminuir a sobrecarga gerada pelo esporte. Ele deve se deformar para desacelerar o nosso corpo e diminuir o choque com o chão.
Os mais rígidos, que impedem a movimentação de músculos e articulações, não são, portanto, indicados. Sobretudo, para quem não se prepara fisicamente para a corrida. Isso porque, segundo a pesquisadora, estudos mostram que o que diminui essencialmente a carga mecânica durante a prática é o próprio corpo humano.
Um estudo mostrou que os músculos da coxa atenuam maior parte do impacto a cada passada da corrida, seguidos pelo tendão calcâneo, os músculos da batata da perna, e o arco plantar. Para os tênis sobram uma menor parte.
“Nossa primeira busca tem que ser atingir um bom condimento e fortalecimento do corpo, sobretudo dos membros inferiores, em vez de investir milhares de reais em um tênis. Uma comparação com a busca do tênis ideal é quando procuramos uma pílula para emagrecer em vez de fazer dieta e exercícios físicos”, diz Isabel.
Nossa primeira busca tem que ser atingir um bom condimento e fortalecimento do corpo, sobretudo dos membros inferiores, em vez de investir milhares de reais em um tênis.
Isabel Sacco, professora da USP
A professora conduziu um ensaio clínico controlado, publicado pelo The American Journal of Medicine, no qual foram dados a 120 corredores exercícios para os pés, por um ano. Cada corredor usou o tênis habitual, de sua preferência. A conclusão foi que, com oito movimentos simples, como encolher ou levantar o arco do pé ou pegar um lápis com os dedos, a chance de lesões foi reduzida em 2,5 vezes.
Rodrigo Carneiro, proprietário da Velocitá, loja especializada em tênis de corrida em São Paulo, tem essa mesma percepção sobre a necessidade do corpo preparado para a atividade. “As pessoas acreditam que o tênis vai fazer o que elas devem fazer. Ele é um complemento. Para quem corre 6k por hora, a mudança que um modelo de performance oferece é nada ou muito pequeno”, diz.
Criada em 1996, a marca inaugura, em breve, sua quarta loja de rua. A quinta também já está a caminho. Carneiro diz que hoje vende o dobro do que antes da pandemia – o que ilustra a crescente procura por informações sobre o modelo adequado de calçado.
Diferenças na pisada
As lojas da rede disponibilizam esteira para que os compradores experimentem o tênis, além de teste de pisada. O que os compradores buscam é descobrir se a pisada é pronada (que rotaciona para dentro), supinada (apoio na lateral externa do pé) ou neutra. Algumas marcas oferecem modelos apropriados para cada tipo de pisada – e os próprios corredores se apegam a essas características para escolher o modelo.
As pessoas acreditam que o tênis vai fazer o que elas devem fazer. Ele é um complemento.
Rodrigo Carneiro, lojista especializado em tênis de corrida
“Nos anos 1980 os estudos trataram a pronação como um problema. A solução encontrada foi fazer tênis com reforço medial, para impedir que os pés virassem para dentro. Criou-se uma indústria em torno disso. Fala-se em três tipos de pisada, mas, na verdade, há só duas construções de tênis: o que tem esse reforço para estabilidade ou não”, explica Carneiro. Para ele, o termo mais adequado atualmente é “caminho do movimento”.
A mestre em ortopedia e traumatologia Ana Paula Simões não vê a característica da pisada como um fator essencial na hora da escolha de um modelo. “As marcas pecam em uma questão: nenhum ser humano é igual ao outro e nem um pé é igual ao outro. Minha recomendação é a de comprar um de pisada neutra”, diz.
A médica indica, caso a pisada seja acentuadamente ou excessivamente para dentro ou para fora, procurar um profissional de saúde para uma avaliação. A solução passa, mais uma vez, por um fortalecimento adequado ou suporte (uma palmilha) que pode ser usada dentro do tênis preferido pelo corredor.
Altura ideal
Outro fator que costuma gerar dúvida entre os corredores é a questão do drop – a diferença entre o calcanhar dentro do calçado até a ponta do pé, e que interfere na forma como o corpo recebe os impactos da corrida. No mercado, há tênis considerados minimalistas, com 6 de drop (6 mm) a 14 (14 milímetros).
O drop maior, de acordo com Isabel Sacco, favorece o contato antecipado do calcanhar com o chão, com mais sobrecarga mecânica. É como se fosse uma batida mais seca, que requisita a única articulação do calcanhar. Quem corre com o drop menor consegue apoiar o pé no chão de forma mais suave e natural e utilizar outras 33 articulações dos pés para atenuar o impacto.
É preciso esclarecer que um tênis alto não tem necessariamente um drop alto. E vice-versa. Isso porque o tênis pode ter a espessura do amortecimento mais alta – o que muitos chamam popularmente por salto.
Quanto maior a altura, maior a mobilidade do tornozelo e a sobrecarga mecânica na articulação, facilitando, assim, a pronação, que é um fator de risco para lesões
Isabel Sacco, professora da USP
O que a professora Isabel orienta para, de modo geral, para não errar nem sobre drop e nem sobre a altura de fato de tênis, é colocar o dedo na sola e medir a distância até o chão. Ela não poderá ter mais que 3 cm – e isso é baseado em estudos recentes conduzidos pelo pesquisador em biomecânica Benno Nigg, da Universidade de Calgary, no Canadá, considerado um dos maiores especialistas em corrida na atualidade.
“Quanto maior a altura, maior a mobilidade do tornozelo e a sobrecarga mecânica na articulação, facilitando, assim, a pronação, que é um fator de risco para lesões”, explica Isabel. Rodrigo Carneiro, da Velocitá, chama atenção para outra questão, que ele, que se tornou um especialista em corrida, percebeu em mais de 20 anos como lojista. Muita gente compra um tênis novo e aumenta subitamente o volume de treino, o que pode causar algum tipo de trauma.
“A adaptação é devagar. É preciso correr duas vezes por semana com o tênis antigo e uma com o novo. Agora, se o tênis te dá um incômodo permanente, ele não é para você”, explica. Ele ainda dá a dica para quem sofre com bolhas, sobretudo no calcanhar, colocar um esparadrapo micropore no calçado antes de desistir definitivamente dele.
Prazo de validade
Muita gente acaba por se apegar a um determinado par de tênis. Entretanto isso não é um hábito saudável e pode prejudicar a saúde dos pés e até facilitar acidentes.
“Um tênis muito gasto perde sua capacidade de aderência, o que pode levar o corredor a escorregar em uma superfície úmida, e a proteção, o que pode causar uma perfuração caso ele pise em algum objeto”, diz a ortopedista Ana Paula Simões.
Um tênis muito gasto perde sua capacidade de aderência
Ana Paula Simões, ortopedista
Os corredores costumam controlar a duração do tênis por quilômetros corridos. E as opiniões divergem. “Passou de 100 km há a diminuição da capacidade de atenuar o impacto”, diz Isabel Sacco. A literatura especializada também fala em 500 ou 800 Km. Uma dica importante é ter dois tênis para revezar durante o treinamento. Assim, os dois terão uma durabilidade maior. “Tenha um novo e um velho. Quando você conseguir abandonar de vez o velho, encosta, compre um novo, assim, comece o processo novamente”, sugere Carneiro.
Fonte: Estadão