Documento de general expõe mapa da cloroquina e a ‘cadeia de comando’ para produzi-la

Em resposta ao TCU, comandante da 1.ª Região Militar detalhou quem foi responsável pelos pedidos e ordens para que o laboratório do Exército produzisse milhões de comprimidos
Comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina  Foto: REUTERS/George Frey

Por: Marcelo Godoy

Enquanto Jair Bolsonaro exige até certificado de reservista para aprovar vacinas, coube ao general André Luiz Silveira, comandante da 1.ª Região Militar, no Rio, a tarefa de explicar por que o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu mais de 2 milhões de comprimidos de cloroquina para combater a covid-19 se, desde março, o tratamento era contestado pela comunidade científica. O militar teve de justificar ao Tribunal de Contas União (TCU) também por que o insumo farmacêutico ativo – cloroquina difosfato – foi comprado na Índia por um preço em dólar 77% superior ao adquirido em 2019 pelo laboratório.

Após o estudo Solidarity, feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com 11 mil pacientes em 32 países e 400 hospitais, mostrar a inutilidade da cloroquina contra o vírus Sars-Cov 2, não há mais quem defenda a droga para tratar os doentes – exceto Jair Bolsonaro e os bolsonaristas. O general fez sua reposta em 31 de julho – antes da publicação do estudo da OMS. E usou a lei 13.979 e na MP 926/2020, que afrouxaram os critérios para as compras públicas na área da Saúde durante a pandemia, para se justificar. 

A argumentação do general se baseou no fato de que cumpriu a legislação para a compra e afirmou que a variação do preço do produto se justificava pelo aumento do preço da mercadoria no mercado internacional. A história mostra ser comum o aparecimento de espertalhões diante do pânico da peste. O medo das epidemias e das doenças incuráveis é combustível para mercadores de esperanças. Há quem venda a cura da aids. Há quem ofereça remédio contra a covid-19. O presidente não queria que a economia parasse, que o desemprego aumentasse e sua reeleição fosse para o vinagre. Exigiu coragem dos maricas e divulgou a cloroquina. 

Mas a lei só dispensa a licitação e reduz suas exigências para a “aquisição de insumos necessários ao combate á covid-19”. Eis aqui o problema: é a cloroquina necessária para combater a covid-19? Se não serve, se havia dúvida razoável durante os atos do governo, a legalidade dos procedimentos de compra pode ser questionada? Essa é a lógica que estava por trás da apuração do TCU. Algo semelhante à aquisição de respiradores médicos inadequados para os pacientes com covid-19.

Comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina
Comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina  Foto: REUTERS/George Frey

O general contou no ofício ao TCU – documento revelado pelo jornalista Luiz Fernando Toledo, no site Fiquem Sabendo – que o preço de US$ 230 por quilo do insumo farmacêutico era o valor de mercado do produto, incluindo o frete da Índia – onde é produzido – para o Brasil. No ano passado, o mesmo quilo valia US$ 130. Ao justificar a compra, o general foi além. Apontou toda a cadeia hierárquica responsável pela LQFEx ter produzido o medicamento, que tem validade de dois anos.

Diz que o governo mobilizou o Itamaraty – embaixada em Nova Deli – que informou que a empresa indiana Alcon Biosciences Pvt Ltd poderia fornecer 3 mil quilos ao Brasil.  O general se queixou das notícias da imprensa e disse que LQFEx é uma repartição séria, que integra o Complexo Industrial da Saúde (CIS) com outros 20 laboratórios públicos. Ele produz medicamentos para doenças negligenciadas, como tuberculose e hansenpiase, que a indústria farmacêutica não tem interesse em fazer. E lamentou: “Infelizmente não há cicatrização social do dano causado pela desinformação provocada”.  

Em seguida, o general citou portarias dos Ministério da Saúde e da Defesa e a mensagem 116/2020, do Centro de Coordenação de Logística e Mobilização (CCML) do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), que pôs sob coordenação do EMCFA a cadeia produtiva e a distribuição de medicamentos para covid-19. Até aí, nada de mal. É o que ocorre em qualquer plano de mobilização. A polêmica começa com a nota informativa nº 5/2020 do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos (DAF), do Ministério da Saúde, que regulamentou o uso da cloroquina em casos graves.

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A Sociedade de Patologia Infecciosa da França acusa Didier Raoult de ‘promoção indevida da hidroxicloroquina’.  Foto: Thomas Coex/AFP

A nota traz como justificativa para a medida quatro trabalhos. Dois deles são de pesquisadores de Marseille (França), do grupo do médico Didier Raoult, o homem que ‘inventou’ o uso da cloroquina contra a covid-19. Ele assina um dos trabalhos. Os outros dois são sobre os efeitos da droga em pacientes cardíacos e um que desaconselhava seu uso contra a covid-19. Este é da pesquisadora Rachel Riera, do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde, do Hospital Sírio-Libanês (NTAS-HSL) e foi publicado no dia 20 de março, sete dias antes da nota do ministério.

Sobram, portanto, os trabalhos dos franceses. A atuação de Raoult  e seus estudos sobre a covid-19 foram bombardeados pela comunidade científica francesa. O que era contestação aos métodos no início, virou há duas semanas em acusação de charlatanismo, com direito a processo no Conselho Francês de Medicina contra Raoult, conforme mostrou o jornal Le Monde. Foi com base em trabalhos de equipes ligadas a Raoult que o ministério liberou o uso da cloroquina para ser distribuída à rede SUS.

O general revelou em seguida o mapa da cloroquina. Contou que, sob a coordenação da Saúde e da Defesa, distribuiu-se 1 milhão de comprimidos de 150 mg em razão de pedidos feitos nos dias 13 e 28 de abril. São Paulo recebeu 316 mil. Em 2.º no ranking da cloroquina estava o Amazonas, com 160 mil comprimidos. Na época, Manaus enterrava os mortos em covas coletivas. O Rio ganhou 100 mil. Seis Estados ocuparam a última posição, com 5 mil comprimidos (Alagoas, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Piauí, Sergipe e Tocantins). Entre os militares, quem mais recebeu a droga foi a Marinha. O Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio, ficou com 16,8 mil comprimidos, número superior ao entregue a 11 Estados. Já o Hospital Central do Exército, também no Rio, ganhou 9,6 mil. E o Hospital das Forças Armadas, em Brasília, 6,5 mil.   

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Em coletiva de imprensa, o secretário executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, afirma que não é obrigatório vacinar 100% da população para conter a covid-19. Foto: Erasmo Salomão/MS

Em 20 de maio, o Ministério da Saúde expandiu o uso da cloroquina para casos leves. A medida foi feita por meio de nota informativa da secretaria executiva da pasta, ocupada pelo coronel Antônio Élcio Franco Filho, um dia antes. A nota lista mais de 40 trabalhos para justificar por que a cloroquina devia ser utilizada contra a covid-19. Mais uma vez estão ali quatro trabalhos do francês Raoult. Nenhum dos outros artigos atestava a eficácia do fármaco,  exceto um feito por médicos militares espanhóis.

Em 7 de julho, o LQFEx mandou outra remessa de 1,024 milhão de comprimidos para os Estados. Desta vez, só 12 receberam a droga – o campeão foi o Rio Grande do Sul, com 323 mil comprimidos. São Paulo, Rio e Amazonas não constam da lista. Onze capitais foram agraciadas com o remédio. Vitoria (54 mil), Porto Velho (40 mil)  e Maceió (30 mil) lideraram a lista. Para o general, não se podia exigir outra conduta do LQFEx diante das demandas e da convocação da Defesa. Para justificar a decisão de fabricar cloroquina, ele alegou não haver tratamento consagrado contra a covid-19 ou consenso na comunidade médica a respeito de seu uso.

Não é bem assim. Desde maio a cloroquina foi excluída pela OMS das opções de tratamento da doença, assim como pelos médicos que observam a ciência. Em junho, foi a vez da FDA americana revogar a licença para seu uso emergencial contra o coronavírus.  Todos a consideram ineficaz, como a farinha dos placebos. E seu principal advogado – o francês Didier Raoult – se vê agora às voltas com as acusações de seus pares. Se há médicos que a recomendam no Brasil, é porque há bolsonaristas entre os médicos. 

Bolsonaro faz ‘propaganda’ de hidroxicloroquina
Bolsonaro publicou um vídeo mostrando que estava tomando a terceira dose  Foto: Reprodução

Por fim, o general afirmou que não poderia ser exigida outra conduta do LQFEx, alegando que a produção de cloroquina, “por seu baixíssimo custo”, equivalia “a produzir esperança a milhões decorações aflitos com o avanço e os impactos da doença no Brasil e no mundo”.  O general resumiu o discurso do governo: produzir esperança para si e para os seus em vez de ciência. Ainda que isso signifique atrasar a vacinação – esta sim uma opção eficaz contra a covid-19. Bolsonaro diz não estar nem aí para o fato de uma dezena de países começarem a vacinar nesta semana. E é defendido por militares ouvidos pela coluna sob o argumento que ele está certo em exigir que as vacinas sejam seguras. Ninguém questiona por que os outros páises foram eficientes onde o Brasil fracassou.

Se o bolsonarismo não fosse esse estado de espírito que acredita em qualquer coisa que escuta, talvez tivessem razão os militares críticos ao governo que enxergam apenas cinismo nos colegas do partido militar interessados em se manter no poder. O homem que se diz preocupado com a segurança da vacina gastou milhões com uma “esperança” inútil, a cloroquina. Diante da ação do presidente, o ofício do general André Luiz Silveira mostra o mapa da droga e parte de sua cadeia de comando. É um desses documentos que a Justiça e a História deviam guardar. A primeira para indagar os chefes do general. A segunda para contar às gerações futuras como a pandemia chegou a 190 mil mortos no Brasil.

Fonte: Estadão