Pesquisa coordenada por hospitais de excelência e feita com 667 pacientes mostrou ainda que uso do medicamento pode aumentar risco de arritmia cardíaca e lesão no fígado
Um estudo brasileiro coordenado pelos principais hospitais privados do País aponta que a hidroxicloroquina, associada ou não ao antibiótico azitromicina, não tem eficácia no tratamento de pacientes internados com quadros leves e moderados de covid-19.
A pesquisa, publicada nesta quinta-feira, 23, na renomada revista científica internacional The New England Journal of Medicine, verificou ainda que, no grupo de pacientes que fez uso dos medicamentos, foram mais frequentes alterações nos exames de eletrocardiograma e de sangue que representam maior risco de arritmia cardíaca e lesões no fígado.
Participaram do ensaio clínico 667 pacientes de 55 hospitais, sob a coordenação de oito instituições: Hospitais Albert Einstein, HCor, Sírio-Libanês, Moinhos de Vento, Oswaldo Cruz e Beneficência Portuguesa de São Paulo, além do Brazilian Clinical Research Institute (BCRI) e Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet). É o maior estudo com a hidroxicloroquina feito até agora no País.
Os participantes foram divididos, de forma randomizada (por sorteio), em três grupos: um (221 pacientes) foi tratado com hidroxicloroquina, outro (217 pacientes) também recebeu o medicamento, mas associado à azitromicina, e o terceiro (227 pacientes) foi tratado somente com suporte clínico padrão, que inclui medicamentos para sintomas, catéter com oxigênio, entre outros.
Os pacientes que tomaram hidroxicloroquina (isolada ou associada à azitromicina) também receberam esse mesmo suporte clínico padrão, de acordo com a pesquisa.
Os voluntários receberam as medicações por sete dias e foram acompanhados por duas semanas. Ao final do seguimento, os pesquisadores concluíram que não houve diferença significativa na evolução dos pacientes dos diferentes grupos.
No grupo tratado com hidroxicloroquina e azitromicina, 69% dos pacientes estavam em casa sem sequelas ao final do período. No grupo que não usou nenhuma das duas medicações, esse índice foi de 68%. Entre os que tomaram só a hidroxicloroquina, 64% receberam alta no mesmo período. O índice de óbitos ficou em torno de 3% nos três grupos.
“A avaliação foi feita de acordo com uma escala de sete possíveis desfechos, na qual o 1 é a alta do paciente e o 7, o óbito. Não observamos diferenças na evolução dos pacientes dos três grupos. Neste perfil de paciente, portanto, a utilização da hidroxicloroquina não promove uma melhora no estado clínico”, explica a cardiologista Viviane Cordeiro Veiga, coordenadora de UTI da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo e uma das pesquisadoras do estudo.
Para o cardiologista Renato Lopes, pesquisador e professor da Unifesp e da Duke University (EUA), que também participou do estudo, os resultados da pesquisa brasileira apontam que, mesmo nos casos mais leves de covid-19, a hidroxicloroquina não traz benefício.
“Outros estudos internacionais já mostraram que ela não tinha eficácia para casos graves, mas muitos críticos diziam que ela não havia funcionado porque foi administrada muito tarde, quando o paciente já estava em estado grave. Mostramos que, mesmo quando o início do tratamento é precoce e em casos leves, não há eficácia”, destaca.
Como o foco do estudo era avaliar a ação da medicação em casos leves e moderados, foram incluídos somente participantes internados que não precisaram de oxigênio ou que utilizaram somente 4 litros por minuto. Eles iniciaram o tratamento em até 48 horas após a internação e, no máximo, sete dias depois dos primeiros sintomas.
Lopes ressalta que os primeiros estudos que sinalizaram possível benefício da hidroxicloroquina contra a covid eram pesquisas in vitro ou ensaios clínicos observacionais ou não randomizados, métodos que são frágeis para estabelecer a eficácia de um determinado medicamento. Ele destaca que as pesquisas randomizadas realizadas posteriormente apontam para a falta de eficácia da hidroxicloroquina para covid, achado corroborado pelo estudo brasileiro.
“O padrão-ouro da pesquisa clínica é o estudo randomizado justamente porque é a única forma de termos grupos iguais em que a única diferença será a administração do medicamento. Só assim é possível eliminar vieses e estabelecer uma relação de causa e efeito sobre a eficácia da medicação. Nesse sentido, damos uma importante contribuição para a ciência ao fazer esse estudo e publicar em uma das principais revistas científicas do mundo”, explica Lopes.
Eventos adversos
Quanto aos eventos adversos, a pesquisa mostrou que os pacientes que tomaram hidroxicloroquina, com ou sem azitromicina, apresentaram com mais frequência uma alteração no eletrocardiograma chamada de aumento do intervalo QT, associado a maior risco de arritmia cardíaca. Entre os medicados, o índice de ocorrência da alteração foi de cerca de 14% contra apenas 1,7% no grupo controle.
Também se observou mais frequentemente entre os pacientes que tomaram a hidroxicloroquina níveis elevados das enzimas TGO e TGP, que podem representar lesões no fígado.
No grupo de pacientes que tomou a medicação associada à azitromicina, esse percentual foi de 10,9%. Entre os que receberam apenas a hidroxicloroquina, de 8,5%. Nos pacientes do grupo controle, somente 3,4% tiveram essa alteração nas enzimas hepáticas. Não foram observadas diferenças significativas na ocorrência de eventos adversos graves, como arritmia maligna ou insuficiência no fígado.
Mesmo com a maioria dos estudos randomizados apontando para a falta de eficácia da hidroxicloroquina para a covid, o Ministério da Saúde mantém em seu protocolo de tratamento a possibilidade de indicação do tratamento para casos leves, moderados e graves da doença. A decisão vem da pressão do presidente Jair Bolsonaro em defender a droga. Diagnosticado com covid há duas semanas, ele disse estar tomando o medicamento.
Outros estudos
O estudo divulgado nesta quinta é um dos nove ensaios clínicos conduzidos pela iniciativa batizada de Coalizão Covid-19 Brasil, que tem a participação de seis hospitais e duas instituições de pesquisa. As demais pesquisas incluem testes de outros medicamentos, como o antiinflamatório dexametasona e o anticoagulante rivaroxabana, além da própria hidroxicloroquina para um grupo de pacientes mais graves. Os testes clínicos ainda estão em andamento.
Fonte: Estadão
NOTÍCIAS RELACIONADAS