O neurocirurgião de Santarém (Pará) e médico de comunidades e etnias semi-isoladas da Amazônia, faz um alerta: “Os povos indígenas vivem um dos momentos mais delicados de sua história. Muitos estão doentes e morrendo em seus territórios com assistência precária, enquanto no entorno cresce a ameaça de invasão e saques de suas terras”
O neurologista Erik Jennings Simões é responsável, desde 2003, pela saúde do povo Zoé (etnia de contato recente). Piloto de pequenos aviões, ele visita comunidades e é um dos cinco médicos responsáveis pelo atendimento de uma área de 500 mil m² da Amazônia brasileira. Em entrevista exclusiva para a GQ Brasil, defende a valorização das culturais locais no planejamento de saúde – “a centralização das ações contra a covid-19 em grandes hospitais e grandes cidades provoca uma cadeia de contaminação no caminho” – e está na linha de frente do tratamento do coronavírus entre os povos indígenas. “Até o dia primeiro de junho [última segunda-feira], haviam morrido 182 indígenas no Brasil. O que representa um aumento de 550% no número de mortes em 1 mês”.
GQ Brasil: Você defende a valorização de culturas locais no atendimento de saúde (em detrimento de grandes hospitais). Aplicar esta ideia em todo o Brasil pressupõe reformular a área como um todo?
Erik Jennings Simões: Sim. O sistema como todo deve ser repensado e seguir uma outra lógica. Os grandes hospitais são importantes e devem ser reservados para a resolução de patologias complexas, mas não devem ser a base e a finalidade principal do sistema. A comunidade deve ser o principal ponto de partida para a estruturação, planejamento e ações do sistema de saúde. Até agora o que fazemos no mundo inteiro é valorizar grandes centros médicos em detrimento das comunidades, das vilas e pequenas cidades. Esquecemos da cultura e da diversidade nos planejamentos de ações e programas e semeamos a ilusão de que a solução para a maioria dos problemas de saúde está em grandes hospitais e em grandes cidades. Com isso, tiramos muita gente do campo, da beira de rios e da floresta. Colhemos muita frustação quando exilamos pessoas de suas terras e de seus familiares. Mesmo para quem mora na cidade grande, estar em grandes hospitais já é motivo para se sentir doente. A cama é diferente, a comida é diferente, a falta de silêncio, o medo … São vários fatores estressores que, muitas vezes, causam mais sofrimento do que a própria doença. E as consequências não se limitam ao campo do indivíduo. Particularmente, acho que a medicina moderna junto com os sistemas de saúde prestam um desserviço ao meio ambiente e ao equilíbrio climático do planeta. Na Amazônia, principalmente, tiramos as pessoas da floresta deixando essas áreas mais vulneráveis a um modelo de desenvolvimento altamente destrutivo ao meio ambiente. Tanto a medicina quanto os sistema de saúde têm influenciado neste desfecho sim.
GQ Brasil: Este seria um dos ensinamentos que a pandemia trouxe para o sistema de saúde brasileiro?
Erik Jennings Simões: É um dos vários ensinamentos que estamos aprendendo a duras penas. Aprendendo com perda de vidas e sofrimento sem igual. Grandes hospitais são grandes problemas – estruturas altamente complexas que entram em colapso rapidamente. Estamos vendo isso agora. Mais ainda, a centralização das ações contra a covid-19 em grandes hospitais e grandes cidades provoca uma cadeia de contaminação no caminho. Desde o motorista da ambulância, passando pelo segurança ou o piloto do pequeno avião que transportou um paciente aqui na Amazônia. Os hospitais se tornam fontes do vírus e muitos pacientes internados por doenças não covid-19 acabam se contaminando neles. Estamos vendo que mesmo os de campanha em cidades polos na Amazônia não estão dando conta da demanda e muita gente está morrendo sem vaga para leito. Pior do que isso, morrem em pequenas cidades e vilas sem dignidade e sem nenhum suporte básico que poderia até mudar o curso da doença.
GQ Brasil: Como é possível alinhar avanços da tecnologia (vacinas, diagnósticos, cirurgias) e humanidade nos atendimentos?
Erik Jennings Simões: A medicina moderna e os sistemas de saúde têm apresentado avanços fantásticos, inegáveis, que não são incompatíveis com a humanização dos serviços de saúde. Porém, atualmente, perdemos mais tempo olhando a tela do computador do que vendo o paciente. Pedimos muitos exames desnecessários; medicamos muitas vezes sem necessidade. Usando-se de forma equivocada os recursos hoje, ficamos até desumanos em certas ocasiões porque o foco passou a ser não o paciente, mas os recursos que temos. Além disso, os sistemas, muitas vezes, baseiam sua gestão na produção de doença e não na produção de saúde. Um médico, por exemplo, recebe seus honorários de acordo com o número de consultas ou cirurgias que realiza. O tempo fica mais escasso, a correria cada vez maior. Ouvir, acolher e doar tempo a esclarecimento e apoio aos pacientes não são contemplados em nenhuma tabela. Os profissionais que estão mais juntos dos pacientes, das comunidades e das casas, são os menos valorizados nesta cadeia. Justamente aqueles que deveriam ser mais reconhecidos e apoiados. A tecnologia, além de compatível com a humanização dos serviços, poderia ajudar estes profissionais que estão fora dos muros de grandes hospitais. E isso é perfeitamente possível. Os aparelhos de ultrassom estão cada vez menores, os campos cirúrgico leves e descartáveis, máquinas para exame de sangue portáteis – uma série de recursos que deveriam estar a serviços das comunidades e das áreas remotas. Isso sem contar com a telemedicina para ajudar em todo esse processo.
GQ Brasil: Ua pandemia como a do coronavírus afeta não só os indivíduos, mas também a cultura indígena, não?
Erik Jennings Simões: A covid-19 terá um impacto gravíssimo para as populações indígenas em vários aspectos. No cultural, o principal deles é a perda das pessoas mais idosas que são a grande fonte de conhecimento desses povos. Elas são também um referencial e orgulho para os mais jovens serem e pertencerem a sua etnia. Ao contrário de nossa sociedade, a maioria dos povos indígenas tem seus mais velhos como fonte de sabedoria, de conselhos e de conhecimento. São verdadeiras bibliotecas vivas que detêm respeito e elevado carinho do povo. A perda dessas pessoas já está sendo irreparável para várias etnias.
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GQ Brasil: Pesquisadores e profissionais da saúde, como você, alertavam que a chegada do coronavírus em comunidades indígenas possuía uma dimensão de genocídio…
Erik Jennings Simões: A covid-19 já está tendo uma dimensão de genocídio para os povos indígenas. Até o dia 01/06/2020 haviam morrido 182 indígenas no Brasil. Os contaminados eram 1868. Houve um aumento de 550% no número de mortes em 1 mês. A taxa de letalidade na população em geral é de 5,7%, enquanto na população indígena é de 9,7% [dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB]. Ou seja, está morrendo muito mais indígena pelo simples fato de ser indígena. Se essa tendência permanecer, estaremos diante de um genocídio. Mais grave ainda é o fato de a Amazônia Brasileira abrigar mais de 114 referências de povos isolados – que não estão mantendo nenhum contato com nossa sociedade. Muitos destes grupos são em número pequeno de indivíduos e apresentam altíssima vulnerabilidade a doenças respiratórias. Neste caso, não só corremos o risco de termos genocídio bem como etnocídio. Um outro fator importante é que, na pandemia, não existe quarentena para o garimpo ilegal, o madeireiro ilegal e outros atores que, ao contrário, aumentaram as pressões ao redor e mesmo dentro das terras indígenas. Hoje os povos indígenas vivem um dos momentos mais delicados de sua história. Muitos estão doentes e morrendo em seus territórios com assistência precária, enquanto no entorno cresce a ameaça de invasão e saques de suas terras. É urgente que não só o Estado Brasileiro (como também toda a sociedade) se mobilize para evitar a tendência que vivemos. A perda de povos indígenas é principalmente uma perda para a sociedade nacional, pois eles são os maiores responsáveis pelo equilíbrio climático e pelas poucas florestas que ainda nos restam.
Fonte: GQ (Globo.com)