Os estudos mais animadores em relação à droga são pequenos, ou desleixados demais para ser levados a sério como ciência
O dia era 13 de março. Faltavam poucas horas para o novo coronavírus alcançar o status de pandemia quando um advogado e um investidor de criptomoedas dos EUA debatiam no Twitter os bons resultados de uma promissora (e barata) droga para a malária no combate à doença. Baseavam-se em um estudo, de próprio punho, com o timbre de duas grandes universidades e da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. O papo rendeu à dupla a atenção da Fox News e o endosso do magnata da tecnologia Elon Musk. E chamou a atenção de Donald Trump. No dia 19, o presidente americano anunciou a cloroquina como a droga que “viraria o jogo” no combate à doença. Dois dias depois, foi a vez de Jair Bolsonaro imitá-lo. O ex-capitão anunciou o aumento da produção, o controle de exportações e sacudiu sorridente embalagens do remédio em frente às câmeras.
Descobriu-se mais tarde: o paper que embasou a defesa virtual era falso. Todas as universidades citadas negaram o endosso ao estudo. O teste em humanos franco-chinês citado no material era na verdade um pequeno estudo preliminar no qual apenas 20 pacientes receberam cloroquina – amostra pequena demais para tirar qualquer conclusão. Era tarde. Aquela conversa de Twitter causou um efeito dominó que só seria possível com Trump e Bolsonaro. Em menos de um mês, a cloroquina e a hidroxicloroquina, sua versão mais leve, passaram de opção à mesa a cura milagrosa. No Brasil, a Anvisa adiantou-se em proibir a venda do medicamento sem receita. Mesmo assim, a cloroquina desapareceu das farmácias.
A droga tem sido testada no mundo todo, ainda sem resultados conclusivos e em paralelo a outros antivirais. “O que sabemos até agora é que a cloroquina inibe a propagação do vírus em meio celular. Quem não é da área pode achar espantoso. Mas isso é muito comum em fases iniciais de pesquisa”, explica Daniel Dourado, médico, advogado sanitarista e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP.
A combinação é chamada nos rincões da direita de Trump pills. No Brasil, está no centro da polarização política em tempos de pandemia. Por aqui, um grupo que até pouco tempo nem sequer acreditava na doença hoje defende a cura da cloroquina com unhas e dentes. Como resumiu o assessor da Casa Civil, Felipe Cruz Pedri, figura proeminente da turma carluxo-olavista nas redes sociais: “O grande problema da cloroquina é que ela pode estragar tudo curando pessoas com Covid-19 e acabando com o lockdown tão importante para a esquerda tentar um golpe no País”.
Presidente Jair Bolsonaro defende uso da Cloroquina em transmissão ao vivo nas redes sociais – Foto: reprodução/Facebook
O front pró-cloroquina reúne ainda alguns figurões do mercado financeiro. O mais destacado é Hélio Beltrão, presidente do Instituto Millenium. Beltrão também é herdeiro do Grupo Ultra, dono da Extra-farma, uma das maiores distribuidoras de remédios do País. Outro é Renato Spalicci, presidente da farmacêutica Apsen, que fabrica o Reuquinol, cuja caixinha Bolsonaro mostrou até aos líderes do G-20. O empresário faz apaixonada defesa do ex-capitão nas redes sociais.
No campo clínico, a cloroquina ganhou o endosso da Prevent Senior, operadora de planos de saúde para idosos que contabiliza um terço das mortes por Covid-19 em São Paulo e está na mira do Ministério Público estadual. Quando a doença eclodiu, os pacientes estavam concentrados em um único hospital da rede. O local foi chamado por Mandetta de “ambiente de transmissão” da doença. Há algumas semanas, passou a oferecer cloroquina aos pacientes, num coquetel com o antibiótico azitromicina.
CartaCapital teve acesso ao protocolo “Contrariando o Ministério da Saúde” com base no qual a Prevent Senior oferece o remédio até a pacientes que relatem sintomas leves, como perda de olfato ou paladar. A consulta pode ser feita até pelo WhatsApp. Para isso, a rede conta com a orientação da oncologista e imunologista Nise Yamaguchi, principal defensora da indicação da cloroquina ainda nos primeiros dias da doença. Na terça-feira 7, o Ministério da Saúde afrouxou sua posição anterior, de só recomendar o uso em pacientes graves, e passou a admitir o tratamento em internados.
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A Prevent Senior contabilizava, até a terça-feira 7, um total de 98 mortos por Covid-19. Procurada por CartaCapital, a empresa negou pedidos de entrevista e não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem. Em entrevista ao canal bolsonarista Crítica Nacional, transmitida em 2 de abril, o diretor-executivo da Prevent Senior, Pedro Batista, disse que a taxa de óbito entre os clientes que receberam o protocolo oscila entre 8% e 9%. Animadores ou não, esses dados não podem ser levados em conta. “Não há um grupo de controle. Sem isso, qualquer coisa que mude o resultado pode ser atribuída ao efeito que eu desejo. Se ele morrer, você diz que foi o medicamento, ou diz que foi a Covid?”, questiona o médico intensivista Alexandre Cavalcanti, diretor do instituto de Pesquisa do HCor e coordenador de estudo sobre os efeitos da droga em parceria com o Albert Einstein.
Os estudos mais animadores em relação à droga são pequenos, ou desleixados demais para ser levados a sério como ciência. Os mais estruturados indicam que a droga não é mais eficaz que outras utilizadas no tratamento da Covid-19. Os resultados preliminares de um estudo feito pela Fiocruz e pela Fundação de Medicina Tropical mostraram que a letalidade muda pouco entre pacientes que tomaram ou não a droga. Há ainda o temor de que o uso indiscriminado da cloroquina possa criar uma cepa de coronavírus resistente ao medicamento – embora não haja evidências de que o novo coronavírus sofra mutações.
Noves fora as fake news e os interesses políticos e econômicos, é fato que o ânimo de muitos brasileiros com a cloroquina atravessa um desejo legítimo de, diante de uma ameaça sem precedentes, encontrar o quanto antes uma solução. “Em outros tempos, o estudo francês seria um trial sem a menor menor importância”, diz Cavalcanti. Segundo ele, um resultado consistente demoraria anos. Mas diante da urgência os protocolos têm sido acelerados. Espera-se que as conclusões apareçam em dois ou três meses. Enquanto isso, o melhor é continuar com o único protocolo comprovadamente eficaz contra o coronavírus: ficar em casa.
Fonte: Carta Capital