Seja por ingenuidade ou má-fé, esse tipo de ocorrência agrava crises como a atual, da covid-19, confundindo e expondo cidadãos a riscos
Nas redes sociais, não é raro nos depararmos com compartilhamentos de conteúdo antigo como se fosse recente, dando margem a todo tipo de desinformação e oportunismo. Seja por ingenuidade ou má-fé, esse tipo de ocorrência agrava crises como a atual, da covid-19, confundindo e expondo cidadãos a riscos. A mais recente, envolvendo o médico Drauzio Varella, gerou fricção inoportuna nas redes do governo e de políticos. O alento é que temos – dentro das redações – tecnologia para minimizar o impacto desse comportamento de forma automática, bastando alguma integração entre os sistemas publicadores e as plataformas sociais.
Nos sistemas de gerenciamento de conteúdo – os chamados CMS (sigla em inglês para content management system), – o registro da data de publicação e de atualização da notícia é considerado commodity, seja um serviço proprietário (desenvolvido internamente) ou uma solução de mercado, como Plone e WordPress. Não é razoável imaginar que um publicador, por mais básico que seja, não tenha essas informações disponíveis em seu banco de dados. A questão, então, é o uso que as interfaces das redes sociais fazem desse campo no momento da exibição de um compartilhamento.
Assim como mostram título e imagem – campos igualmente registrados nos bancos de dados do CMS de origem -, plataformas sociais também poderiam importar e exibir na tela do usuário a data da publicação do material, com destaque suficiente para alertar sobre a atualidade ou não daquela informação. Tal providência é urgente para não corrermos o risco de desqualificar uma das características singulares do ciberjornalismo: a memória.
A interconexão do que se publicou antes com o agora – especialmente pela hipertextualidade – é ponto crucial da narrativa do jornalismo contemporâneo e aspecto decisivo no negócio das mídias por seu potencial de recirculação e engajamento, gerando tráfego para os serviços e, consequentemente, seu financiamento. Como define o professor e pesquisador Marcos Palácios, “as redes digitais disponibilizam espaço virtualmente ilimitado para o armazenamento de informação que pode ser produzida, recuperada, associada e colocada à disposição dos públicos-alvos visados”. É fundamental, portanto, manter essa característica ativa e saudável.
A integração entre as informações registradas nos dados do CMS e a interface das plataformas sociais não deve ser nenhum bicho de sete cabeças. Google, por exemplo, tem lidado com isso há algum tempo em tarefas bem mais espinhosas do que a exibição de alertas de data. Desde 2017, quando o tema fake news começou a preocupar quem preza pela qualidade da informação que circula na rede, a gigante norte-americana estabeleceu parcerias com sites de notícias do mundo todo para exibir sinalização de checagem da informação em seus resultados de busca orgânica.
Muitos veículos parceiros acrescentaram em seus publicadores campos adicionais para inclusão de metadados sobre fact-checking – devidamente registrados nos bancos do CMS -, padronizando a codificação de tal forma que a ferramenta de busca possa identificar e exibir o resultado da checagem já na lista dos resultados de determinada busca, alertando o usuário antes mesmo de ele clicar no link. Na prática, se alguém fizer hoje uma busca hipotética por “Ministério da Saúde fornecer álcool gel” no Google, receberá no topo da lista de resultados a informação de que se trata de boato, como mostra a reprodução da tela abaixo. No caso da data de publicação da notícia, o campo já existe em todos os publicadores. Resta combinar os padrões com as redes sociais e exibir para o usuário de forma explícita, reduzindo o potencial de circulação da desinformação.
Um bom modelo para se ter como ponto de partida é o trabalho que fazem os jornalistas Angela Pimenta e Francisco Belda no Projeto Credibilidade, braço nacional do The Trust Project, encabeçado pela jornalista Sally Lehrman. A ação busca orientar veículos do mundo todo sobre indicadores que, uma vez embutidos nos códigos da páginas de notícias, sinalizam para as diferentes plataformas as características relevantes sobre aquele conteúdo, como natureza da publicação, se opinativa ou informativa e sobre quem a produziu, gerando confiança em que vai consumir aquele material.
Antes mesmo de uma associação entre empresas, os próprios sites jornalísticos poderiam colocar seu pessoal de UX para desenvolver uma solução e dar o exemplo em suas páginas. Idealmente, para possibilitar uma cobertura abrangente, produtores de conteúdo deveriam efetivar a parceria com as redes sociais e suas tecnologias para além da distribuição orientada apenas pelo clique. Uma união estratégica e cívica com foco na qualidade do que circula por aí faria muito bem ao ecossistema como um todo. E minimizaria o uso oportunista da informação e da memória da rede.
Por Ricardo Fotios – Observatório da Imprensa
** Ricardo Fotios é jornalista, mestre em produção jornalística e mercado pela ESPM e MBA em gestão empresarial pela FGV. Professor do curso de jornalismo da ESPM/SP e ex-gerente geral de publicação/CMS do UOL. É autor do livro Reportagem orientada pelo clique: o critério de audiência na notícia online (Apris, 2018).