Concentração do atendimento especializado em grandes cidades eleva vulnerabilidade de indígenas que vivem em áreas remotas. Por razões distintas, médicos e invasores de terras são vetores em potencial.
O velório de uma senhora indígena de 87 anos da etnia Borari mobilizou a vila de Alter do Chão, em Santarém (PA), no dia 20 de março. Centenas de pessoas compareceram para homenagear a idosa, ligada ao folclore local. Apesar da perda, o clima era festivo, com direito a uma roda de carimbó. Passados dez dias, o governo do Pará anunciou seu diagnóstico tardio de infecção pelo novo coronavírus.
“Santarém pode se tornar um grande epicentro de covid-19 no interior da Amazônia”, avalia o neurocirurgião Erik Jennings. No Hospital Regional do Baixo Amazonas (HRBA), onde o médico trabalha, há dois internados com sintomas graves, sendo um caso confirmado, que estiveram na cerimônia.
O prognóstico de Jennings leva em consideração três fatores. A cidade recebe cerca de 300 mil turistas por ano. Além disso, é o principal polo de comércio e serviços da região. Por fim, Santarém representa a única opção de atendimento especializado para 1,1 milhão de pessoas em 20 municípios do oeste do Pará, região com alta concentração de terras indígenas.
“Não aparelhamos as aldeias com o mínimo de recursos tecnológicos e humanos para resolver as coisas nas comunidades. A estrutura de assistência à saúde indígena foi criada em cima de um modelo que não dá certo nem para o branco em momentos de pandemia”, critica.
Com apenas 20 leitos de UTI para adultos no HRBA e outros sete no hospital municipal, o sistema hospitalar pode colapsar em breve. Havia quatro casos confirmados até esta sexta-feira (03/04). A sobrecarga compromete a resposta ao coronavírus e também o atendimento regular.
Jennings divide seu tempo entre o centro cirúrgico do HRBA e um pequeno hospital criado dentro da Terra Indígena Zoé, comunidade que vive isolada na Amazônia, também no Pará. Seu trabalho na aldeia começou há 20 anos, de forma voluntária, tendo sido posteriormente inserido na estrutura da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde.
Desde 2007, a unidade realiza cirurgias e exames complexos, em diálogo com as cosmovisões e costumes da comunidade. A iniciativa pioneira serviu como referência para recomendações da ONU e do Ministério sobre a assistência de saúde a povos isolados e de recente contato
O objetivo da iniciativa era descentralizar o atendimento especializado dos hospitais das grandes cidades, o qual impõe a necessidade de deslocamento e eleva o risco de contágio para povos sem memória biológica, que podem ser dizimados por uma simples gripe. “Os indígenas que precisarem sair de uma aldeia para receber atendimento serão expostos no avião, na ambulância e, depois, no hospital, onde pessoas livres de covid-19 serão contaminadas”, alerta Jennings.
Médicos são vetores em potencial
Além do eventual deslocamento de indígenas para hospitais, o trabalho dos profissionais da área médica que viajam para as aldeias é fonte de grande preocupação. O primeiro caso de coronavírus confirmado entre indígenas foi justamente de uma agente de saúde indígena do Amazonas.
Ela e outras 26 pessoas vinham sendo monitoradas após terem tido contato com um médico que trabalha no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) da região e foi diagnosticado com o Covid-19 após retornar de férias.
Em áreas remotas da Amazônia, onde as equipes de saúde vinculadas aos DSEIs costumam passar 15 dias corridos nas aldeias, foi determinada a extensão desse período para 30 dias e o isolamento no município mais próximo durante a quinzena de folga. O objetivo é reduzir os riscos gerados pelos deslocamentos. Não está claro, porém, como será custeada a estadia dos profissionais em cidades onde não residem.
“As equipes estão muito confusas. Há profissionais comprando máscaras do próprio bolso, pela carência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Outros têm medo de estarem assintomáticos e levarem o vírus para as aldeias”, conta Marina Corradi, que acompanha o trabalho de 16 médicos supervisores do programa Mais Médicos no Pará e Amapá.
Na última quinta-feira (02/04), a Sesai anunciou a distribuição de kits de testagem rápida para detecção do Covid-19 entre as equipes que visitam as aldeias, além da aquisição de insumos e EPIs.
A ideia é garantir que os profissionais de saúde não levem o vírus para as comunidades atendidas. Entretanto, também na quinta, o Ministério da Saúde informou que os 500 mil testes rápidos distribuídos pelo país apresentam 75% de probabilidade de erro em resultados negativos para o novo coronavírus.
Pandemia ofusca problemas crônicos
Enquanto a sociedade brasileira tenta se adaptar ao distanciamento social para reduzir a propagação do novo coronavírus, grupos criminosos que atuam em terras indígenas parecem ter intensificado suas atividades. Eles também representam vetores em potencial da doença para os povos indígenas.
A DW Brasil noticiou, recentemente, que o garimpo ilegal aumentou na Amazônia durante a pandemia. Na última terça-feira (31/03), o líder Zezico Guajajara foi assassinado a tiros na Terra Indígena Araribóia (MA), região que é alvo do interesse de madeireiros e havia registrado um crime semelhante contra outra liderança em novembro do ano passado.
“As redes criminosas irão perceber uma queda no risco de responsabilização, e certamente verificaremos uma intensificação das atividades criminosas no entorno e dentro das terras indígenas”, afirma Danicley Aguiar, membro da Campanha da Amazônia do Greenpeace.
O ativista chama atenção para a decisão do Ibama de reduzir os esforços de combate ao crime ambiental durante a pandemia, anunciada em março, em meio ao déficit de 2 mil servidores e cortes orçamentários que afetam a autarquia.
Uma situação que demanda atenção especial é a dos povos que vivem em total isolamento. Especialistas têm alertado sistematicamente para o risco de genocídio dessas etnias caso sejam alcançadas, como aconteceu ao longo da história brasileira.
No dia 26 de março, o Ministério Público Federal pediu abertura de inquérito à Polícia Federal para investigar a denúncia feita por lideranças indígenas sobre uma expedição preparada pelo missionário americano Andrew Tonkin a terras indígenas no Vale do Javari, o que fere a política de não contato estabelecida pela Constituição de 1988.
Em outubro do ano passado, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, exonerou da coordenação de isolados o servidor Bruno Pereira, que estava no cargo há 14 meses e chefiou a maior expedição de contato com esses povos dos últimos 20 anos. Pela primeira vez desde a criação do cargo, um nome externo ao quadro técnico foi nomeado por Xavier: o missionário evangélico Ricardo Lopes Dias.
“Apesar do nome — Fundação Nacional do Índio —, a Funai abandonou seu objetivo principal no atual governo, de oferecer a proteção e vigilância dos territórios dos povos indígenas do Brasil. Não é um órgão confiável para nós”, afirma Nara Baré, coordenadora-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
Procurado pela DW Brasil, o Ministério da Saúde informa que têm sido frequentes a detecção e correção de possíveis problemas e a realização de novas ações, baseadas nos protocolos estabelecidos pelo órgão para o combate ao coronavírus, respeitando as especificidades dos povos indígenas. Até esta sexta-feira (03/04), havia 22 casos suspeitos de indígenas contaminados e 19 descartados, além do já confirmado no Amazonas.
A morte da indígena de 87 anos não consta nesse grupo. A Sesai local informou que estava apenas contabilizando casos de indígenas “aldeados”, apontando que aqueles que vivem em cidades são atendidos pelo Sistema Único de Saúde.
Fonte: DW.com